“É muito escasso o tempo que temos para pensar em nós próprios e no propósito da nossa existência.”
Os mutu vêm de Braga e trazem com eles a "Morte do Artista", o primeiro álbum que já os fez viajar pelo palco do Primavera Sound, Casa da Música, Paredes de Coura...Esta viagem que caminha entre o tradicional e o contemporâneo, questiona-nos sobre a nossa existência e sobre o valioso poder da arte!
Diogo Martins, na voz, Pedro Fernandes, nos sintetizadores e guitarra, Nuno Gonçalves, nos teclados, e João Costeira, na bateria.
E: Nos últimos tempos temos cada vez mais artistas a trazerem o Português, as suas origens, influências e herança cultural, e o vosso álbum é um óptimo exemplo disso!
Mas contem-nos como nasceu esta “Morte do Artista”?
M: A Morte do Artista é o resultado final do trabalho que fizemos desde a formação da banda, em 2020. Desde o início que assumimos o desafio de conjugar as diferentes influências num registo com uma identidade própria e isso tomou o seu tempo. A sonoridade introspectiva que resultou desse processo fez com que as letras abordassem problemáticas humanas e sociais dos nossos dias, nomeadamente a instrumentalização do indivíduo como força de trabalho ao serviço do grande capital e a consequente deterioração da dimensão criativa e cultural. A expressão popular que dá o nome ao álbum pareceu-nos, por isso, uma boa representação das mensagens abordadas, e na era da inteligência artificial com capacidade criativa, deixamos o alerta se não estamos literalmente a assistir à morte do artista.
E: Os mutu são quatro elementos com vivências e bases musicais distintas, falem-nos um pouco sobre estas influências e como é que isso define a vossa identidade.
M: Tal como mencionado anteriormente, assumimos desde o início do projeto o desafio de conjugar as diferentes influências de cada um dos elementos. Dizemos “desafio” porque apesar de termos gostos comuns, viemos de mundos diferentes na música. Concretamente, a sonoridade dos mutu resulta de uma mistura simbiótica de estilos como o post rock, a electrónica, o minimalismo e a música tradicional. Desse conceito surge o nome do projecto a abreviar “mutualismo”. Temos sempre bastante cuidado para que os vários estilos não se sobreponham ou se atropelem entre eles. Damos sempre bastante tempo para fazer uma escuta longa dos temas na parte da composição, e naturalmente muitos temas são desconsiderados ou reciclados neste processo quando sentimos que não há esse equilíbrio. O resultado deste processo acaba por ser uma sonoridade com uma identidade própria que nos caracteriza e que não se enquadra num estilo ou género específico.
E: Primavera Sound Porto, Paredes de Coura, Teatro Circo, Casa da Música são apenas alguns dos palcos que estiveram presentes nos últimos anos, qual é a sensação de fazer parte destes eventos e no que é que pensam antes de entrar em palco?
M: Têm sido experiências memoráveis! Há uma mistura de felicidade e surpresa por termos conseguido chegar a este tipo de festivais e espaços logo no primeiro álbum, mas é de facto o cumprir do nosso maior propósito, apresentar a nossa música e as nossas mensagens na primeira pessoa. Temos recebido muita atenção de quem nos vê e críticas positivas, que obviamente nos enchem a alma e aumentam a nossa vontade de fazer mais música e mais concertos.
Antes de entrarmos em palco tentamos sempre estar juntos, acalmar um pouco a adrenalina e o stress que a preparação da parte técnica exige, tentando recriar o ambiente que temos dentro da sala de ensaio durante a criação e consolidação dos temas para que esse sentimento passe também para o público durante o concerto.
E: “A pior prisão é a do pensamento” , “Olha que o conforto é letal”, as vossas letras trazem muitos alertas, quase como notificações do “mundo real”, acham que cada vez mais precisamos de ser chamados à realidade?
M: Sem dúvida! Vivemos tempos em que a pressão sobre a nossa atenção é altíssima. Seja pelo stress do mundo frenético do trabalho, pelas constantes notificações dos nossos dispositivos eletrónicos ou pelos simples afazeres do nosso dia-a-dia. É muito escasso o tempo que temos para pensar em nós próprios e no propósito da nossa existência. É, por isso, urgente chamar à atenção das pessoas que é muito importante pararem, refletirem sobre o seu dia-a-dia e sobre esses ritmos sufocante. É mesmo esse o caminho que querem seguir nas suas vidas? Enquanto não pararmos para pensar, perpetuamos o estado hipnótico e sonolento em que nos encontramos. Essa falta de acção, acaba por ser apenas benéfica para a crescente instrumentalização do ser humano como força produtiva de trabalho e de consumo desproporcional, que serve principalmente os interesses do grande capital.
E: “Sai da produção tens de pensar, já é hora de tu acordares!”quando é que sentem que acordaram? E se tornaram cidadãos mais conscientes?
M: É uma boa pergunta, mas talvez não exista um marco específico que determine esse acordar ou despertar da nossa consciência. Estas ideias surgiram principalmente de um acumular de experiências de trabalho diferentes, tanto em qualidade como em quantidade, e uma reflexão profunda sobre o funcionamento da sociedade e os meios que são utilizados para controlar as massas. É, por isso, necessário e urgente contrariar os comportamentos de manada, desafiar a crítica alheia e procurar um propósito que não esteja relacionado com o sucesso pré definido pela sociedade.
E: Este álbum para além de ser um despertar para o mundo real também nos fala sobre desertificação do interior, acreditam que a cultura, neste caso a música, consegue minimizar este abandono?
M: Na questão da identidade cultural portuguesa, a música é um meio de preservar o que ainda existe ou existiu no meio rural que tem sido esquecido cada vez mais com a migração das pessoas mais jovens para os grandes centros urbanos. A inclusão da música tradicional em sonoridades mais contemporâneas é a nosso ver a melhor forma de podermos continuar a dar vida a essas tradições e quem sabe espevitar a curiosidade de quem nos ouve para explorar mais essa cultura que está documentada ou ainda resiste nos meios rurais.
fotografia de Meru Freire
E: “Em terra de cegos quem tem olho é rei”, quais são os caminhos e as responsabilidades de quem faz ou quer fazer parte da realeza?
M: Esta expressão popular tem uma mensagem bem interessante. Por um lado existe a cegueira de quem se encontra preso e se sujeita às leis do quotidiano laboral e do capital, por outro existe também a cegueira da ganância por parte dessa “realeza” que parece ter um apetite infinito por poder e dinheiro que impede uma distribuição mais equilibrada da riqueza global, falamos aqui principalmente da classe política, grupos religiosos, grandes empresas e grupos de capital. Isto acontece em vários sectores da sociedade e acaba por ser, em última instância, o que mais afecta a liberdade individual e o bem-estar geral. Achamos que deveria pelo menos existir por parte da “realeza” uma maior responsabilidade quando olha para “a terra de cegos”, percebendo que o bem dos outros é também o nosso próprio bem e a evolução humana só é possível se caminharmos colectivamente na direcção de mais liberdade e qualidade de vida para todos.
E: A morte do artista é ficar sempre na margem educada do ser?
M: Não só, mas também! A morte do artista é uma questão bem complexa que não caberia numa única resposta e daria pano para mangas… quem sabe numa próxima conversa mais longa noutro formato! Voltando ao assunto, a “margem educada do teu ser” é, aos nossos olhos, a principal causa que perpetua a lenta e contínua morte da dimensão artística humana. Infelizmente, a escola prepara-nos mais para sermos executantes do que pensadores criativos. Há cada vez mais uma generalizada desatenção à cultura e à expressão artística, em benefício de um caminho “mais seguro” ou normal, ficando a arte e a cultura em segundo plano. É muito importante mudar este paradigma e perceber a importância central que a dimensão artística representa para o ser humano, desde os seus primórdios. É uma das nossas principais formas de comunicação e uma das características centrais que nos diferencia de outras espécies.