10 de junho — Lusíadas: Valete Fratres!

Lusíadas: Valete Fratres!

1. Dia de Portugal. Na era global os velhos Estado-nação são desafiados a cooperar num destino coletivo, desde logo no cuidado da casa comum. Celebramos o Dia de Portugal evocando o Poeta Camões, e podemos cantar com Caetano Veloso:

A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria

E quero fratria.2

Pode parecer feliz a associação de uma língua a um território, embora Portugal não tenha só uma língua, pois não esquecemos o Mirandês, a nossa segunda língua oficial, e apetece lembrar o Galego como a língua da nossa fraternidade nortenha, ou dialetos de outras geografias. A língua é mátria, é materna, no sentido de ter sido com ela que aprendi a trágica História da Carochinha e demais contos: a arte com que A Tia Miséria prendeu a Senhora Morte, enganando-a; A Menina do Mar de Sofia de Mello Breyner; a Origem do Conto do Vigário de Pessoa, etc.3 Mas a língua, no caso da portuguesa, é um vasto horizonte de geografia variada, de deleitosas e distintas sonoridades. O jeito com que cada um acrescenta um ponto ao seu conto é único, notável e elimina fronteiras territoriais. Em volta da fogueira, sob o sidéreo estrelado, podemos narrar histórias pela música, ou com um simples olhar silencioso, ou através de uma língua. A língua é o chão da imaginação, é o terreno fértil onde nos sentamos para semear histórias, rezas e memórias. Pela língua também se partilham durezas, sofrimentos e injustiças. As pregações políticas de António Vieira (um “imperador da língua”) têm o sabor narrativo de uma fábula, mas atacam o real de frente. Encantam e reivindicam!

2. Dia de Camões. Este gigante poeta é uma nação inteira na sua arquitetura literária. Todavia, é edifício onde ninguém vive, se ninguém lhe conhecer as entranhas de versos, música, tambores, índias, amores, animais, espadas, invejas e glórias, os deuses todos e diversos, as manhas e astúcias dos marinheiros e náufragos dispersos. Guardo como favorito o gigante Adamastor, acarinho o seu “rosto carregado” pelo seu amor azarado. Se não tivermos na ponta da língua verso algum do Poeta, resta-nos vê-lo como o jazigo frio, onde podemos depositar flores, nesse “jardim de pedra”, sem as vermos florir na Ilha dos Amores. O peito, se se enche neste dia, é para recitar poesia, buscando a autossuperação perfectível.

3. Dia das Comunidades Portuguesas. Este não é o dia do nascimento numa pátria ou no berço de uma língua da cultura, é o dia do destino, do rumo, da viagem e da aventura.

Recordando Mário de Andrade:

Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso
onde Deus der...
4

Ensina António Vieira:

Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra, para morrer, toda a terra. Para nascer, Portugal: para morrer, o mundo. 5

Festejamos a aventurosa ousadia da ida e da partida, dobrando tormentas, medos e naufrágios (erguendo as mãos à esperança que não pode dormir) rumo à conquista do futuro. Não se trata de glórias de pedra, que as estátuas, essas, derrubam-se e os poderes dão cambalhotas na mesa redonda do Mundo. A lição do pó, da ruína e das vaidades insignificantes desta vida, ensinou-a o filósofo brasileiro Matias Aires. Garimpou os nossos nadas (vanitas), um por um, tudo “névoa de nadas”, e lembrou que não há teatro que dure, somos só esqueletos dançando e rindo, vestindo bruma ao sabor da maresia. O que ficou da língua por esse globo fora são palavras que ajudam a cantar o mundo ou lhe dão outro tempero. As palavras perduram, mais do que em lápides eternas, na boca mundana que as leva no coração, local onde tudo se decora. As palavras vivem saracoteando em quem as canta, como devoção. O cuidado do outro, da casa comum, dos refugiados e dos muitos peregrinos errantes desta terra, não depende dos poderes das nações, se altaneiras e palavrosas, mas do sentido de comunidade, do contributo local, cordial, sussurrante. Como dizia o jovem, resgatando corpos do Mediterrâneo: a esses não lhes peço passaporte. Em suma, celebramos, sob o signo de um grande poeta, todos os poetas, artistas, altruístas e os demais que se superam quotidianamente. Celebramos a música, os encontros, a solidariedade, a língua portuguesa por esse mundo imenso. A comunidade criada com um inimigo comum é fraca e desumanizadora. Celebrar o Dia das Comunidades é voltar a apreciar o sentarmo-nos em conjunto, como apenas um entre vários na fraternidade humana, aquecidos por contos, ladainhas, lendas, músicas de pronúncias variadas e geografias diversas.

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1 Desafiaram-me a escrever um texto para ser lido nas comemorações do 10 de junho, dia de Portugal, Camões, e das Comunidades Portuguesas, participando num programa de rádio da diáspora em Bruxelas (Rádio Alma). Redigi, assim, as habituais três notas sobre o que celebro neste feriado.
2 https://www.youtube.com/watch?v=tX7cqBreLUY
3 E mais tarde Os Três Reis do Oriente (os murmúrios da água são aí singulares), e Mineirinho de Clarice Lispector (as 13 balas disparadas).
4 Mário de Andrade, Poesias Completas (São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 157-158): http://www.nilc.icmc.usp.br/nilc/literatura/opoetacomeamendoim.htm
5 António Vieira, "Sermão de Santo António" in: Obra Completa Padre António Vieira (Lisboa: Círculo de Leitores, t. II, vol. X, 2013, p. 239).
6 Matias Aires, Reflexões sobre a vaidade dos homens (Lisboa: IN-CM, 2005).
7 Qohélet = O-que-Sabe: Eclesiastes: poema sapiencial, I, 2 (tradução portuguesa de Haroldo de Campos).
8 https://observador.pt/especiais/miguel-duarte-quando-vejo-uma-pessoa-a-morrer-afogada-nao-lhe-pergunto-se-tem-passaporte-tiro-a-da-agua/


Rui Rêgo

Investigador Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), desenvolve a sua investigação de doutoramento em ética e política no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CFUL). Integra inúmeras associações académicas e civis, tendo sido anteriormente Investigador no CLEPUL — Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do IECCPMA — Instituto Europeu Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes

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