Thora Jorge: “em ‘Sem Retorno’ abordamos a biografia, o mundo interior e a literatura de Manuel Teixeira Gomes”
"Mas aprazia-me viver a minha vida e a meu modo,
imperterritamente livre no vastíssimo jardim sem barreiras da minha solidão..."
Manuel Teixeira Gomes
Em outubro de 2021, com sete espetáculos marcados, começava a circulação de “Sem Retorno”, criação de Ana Alberto e Thora Nadeshka Jorge, que conta com a produção da Dancenema - Associação Cultural, radicada em Portimão. Na próxima quinta-feira, dia 24 de março, chega ao Auditório Duval Pestana, no Centro Cultural de Lagos, pelas 21 horas.
Com forte inspiração na vida e obra de Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), escritor e sétimo presidente da Primeira República Portuguesa (entre 1923 e 1925) e natural de Portimão, “Sem Retorno” tem o apoio dos municípios por onde vai passar e da Direção Geral das Artes (DGArtes).
Aos bailarinos Thora Nadeshka, Tiffanie Jorge, Laura Abel, Sara Pina e Ana Alberto, junta-se a participação dos alunos da turma do 12ºB do Curso Profissional de Artes do Espectáculo - Intérprete Ator / Atriz da Escola Secundária da Bemposta, Portimão.
Entre Portimão e o mundo, desde 2008 que a Dancenema - Associação Cultural vem atuando na promoção, divulgação e difusão de projetos culturais no âmbito da dança, vídeo e multimédia, em particular na região do Algarve. A atividade complementa-se com espetáculos, workshops, cursos temáticos de formação em dança e projetos de criação artística, como é o caso de “Dança como Veículo de Aproximação entre Culturas", Projeto de Intercâmbio Cultural com Cabo Verde, desenvolvido em 2012 no âmbito da formação em Dança para a Comunidade, e ainda “Os Sons e a Dança”, projeto artístico pedagógico orientado para crianças dos 3 aos 9 anos.
Dancenema é ainda organizadora do Entrelaçados - Festival de Dança Contemporânea, onde podem ser encontrados espetáculos, performances, filmes, debates, workshops especializados em várias artes, entre outros eventos.
Sobre “Sem Retorno”, a atividade da Dancenema, o Festival Entrelaçados e a Cultura no Algarve, conversámos com Thora Jorge - momento que abaixo se transpõe.
Como nasceu “Sem Retorno”?
Esta peça surgiu em 2018: nesse ano foi feito um convite à Dancenema - Associação Cultural, a partir do Teatro Municipal de Portimão. A intenção era apresentarmos uma peça no Festival Entre Mares sobre Manuel Teixeira Gomes. Nessa altura, reuni-me com Ana Alberto, bailarina algarvia, de Faro, com quem tenho vindo a trabalhar há algum tempo. Em conjunto agarrámos neste desafio e começámos a pesquisar sobre Manuel Teixeira Gomes.
“Sem Retorno” está em digressão. Onde esteve e estará ainda?
Estivemos em Poritmão, Lagos, Lagoa e ainda vamos estar em Silves. Estreámos em 2018, na Black Box, inserido neste festival organizado pelo Teatro Municipal de Portimão. A peça teve bastante sucesso e muita gente queria ver, até porque a Black Box tem apenas 50 lugares disponíveis. Então, repetimo-la em outubro, no Grande Auditório do Teatro Municipal de Portimão (TEMPO), para público geral. Nesta altura, tínhamos a intenção de integrar público escolar, de ter essa vertente educativa e pedagógica. Então, inserimos alunas da turma de Contemporâneo da Escola de Ballet municipal de Portimão, numa parte inicial da peça. Depois, decidimos concorrer ao apoio da DGArtes, para circulação de espetáculos.
Além disso, fizemos um acordo com a Escola da Bemposta, nomeadamente com o Curso Profissional de Artes do Espectáculo - Intérprete Ator / Atriz, para que os estagiários do 12.º ano pudessem participar nesta parte inicicial. Eles continuam a traballhar connosco, estão connosco nesta digressão. Fizemos alguns ensaios na escola, mas entretanto eles próprios passaram a vir à Casa das Artes para ensaiar connosco. Estão nos teatros connosco nos dias de ensaio e de ensaio geral, e estão não só integrados como intérpretes, como também na produção: tratam de adereços, cenário entre outras tarefas, juntamente com os bailarinos. Esta relação tem corrido muito bem, e nesta circulação do espetáculo dedicámos algumas sessões às escolas. Fizemos espetácuos para público escolar entre o oitavo e o 12.º ano; também em Lagoa e Lagos, um espetáculo para público escolar e outro aberto a público geral, tal como acontecerá em Silves.
Sendo Manuel Teixeira Gomes uma figura tão importante - além de escritor foi o sétimo Presidente da República, em “Sem Retorno” há toda uma componente histórica e literária que os alunos poderão depois trabalhar com os professores. No fundo, levar um bocadinho daquilo que viram no espetáculo para a sala de aula.
O que há na vida de Manuel Teixeira Gomes que vos tenha movido a transpôr para “Sem Retorno”?
Pegamos em vários pontos. Pesquisámos a sua biografia e a sua obra literária, a sua bibliografia, e começamos com uma introdução ao contexto sociopolítico vivido na altura: era a Primeira República, cujos ideiais eram precisamente diminuir o analfabetismo que a monarquia impunha ao dificultar o acesso escola. Havia uma grande instabilidade política, precisamente por ser a primeira república.
A partir daí, abordamos também os conflitos interiores do autor, que foi presidente sem o querer ser. Manuel Teixeira Gomes sentia-se extremamente infeliz com esse cargo. Gostava mais de Arte e Literatura, e queria era dedicar-se à escrita. Por isso, também abordamos esse mundo interior, a insatisfação e o incómodo que sentia por ter de cumprir aquele papel de Presidente da República. Na sua bibliografia, faz muitas referências à Arte, porque tinha um apreço muito forte à Escultura, nomeadamente à de Michelangelo . Então, fazemos uma abordagem às estátuas do artista. Abordamos também a sua escrita erótica que, na altura, era algo que chocava, se censurava. Além do livro “Novelas Eróticas”, Manuel Teixeira Gomes adorava a beleza do feminino e tem vários textos em que se refere à mulher. No fim, temos o seu auto exílio na Argélia, onde acaba por morrer. É fuga da infelicidade que sentia por estar a cumprir aquele papel. Portanto, em “Sem Retorno” abordamos a biografia, o mundo interior e a literatura de Manuel Teixeira Gomes - como vivia e o descrevia nos livros.
Fotografia © Dancenema
A Dancenema é também organizadora do Festival Entrelaçados. Já há data prevista para a edição deste ano?
Este ano não se realizará, devido à pandemia. Em 2020 tivemos de adiar tudo. Seria para avançarmos em fevereiro, mas deu-se a quarentena e acabámos o último evento no final de setembro de 2021, o que nos impediu de ter agora em fevereiro as coisas preparadas para mais uma edição. Ou seja, vamos pular um ano e retomar no próximo, em 2023.
Em retrospetiva, como tem corrido o Festival? O que tem trazido ao Algarve e levado para fora?
O Festival Entrelaçados tem tido muito sucesso. Começámos com Portimão e Lagos, e depois abrangemos Armação de Pêra, Silves, entre outros. Conseguimos convidar companhias tanto nacionais e internacionais. Fizemos também um trabalho para o qual convidámos Gustavo Oliveira, coreógrafo que tem um grupo em Itália e que trouxe algumas bailarinas. Fizemos uma audição e trabalhámos com algumas bailarinas do Algarve, culminando numa peça conjunta.
O Entrelaçados é um festival multidisciplinar, tentamos sempre juntar e abranger várias artes: já tivemos espetáculos de novo circo, performance; já trabalhámos com canto e tivemos peças que juntam o Teatro à Dança. À parte dos espetáculos, costumamos ter workshops de nível aberto e outros profissionais. Temos também uma exposição fotográfica que junta fotógrafos e bailarinos voluntários, e que desenvolvemos em várias paisagens do Algarve. Ao longo do ano, combinamos alguns pontos que nos interessam e fazemos uma open call para bailarinas e fotógrafos voluntários que queiram ir fotografar em paisagens algarvias. No final, fazemos então essa exposição. Temos também performances de rua, para chegar a todo o público e evitar que estejamos restritos ao Teatro. Nessas performances, há um percurso em que dançamos na rua e as pessoas vão seguindo. Para levar a Arte às pessoas, torná-la mais próxima, temos ainda o “Café Performance”, evento que decorre dentro de um restaurante, café ou bar, e para o qual convidamos um músico e alguns bailarinos. Escolhemos um tema e trabalhamos dentro desse espaço.
Além disso, também vamos às escolas: normalmente temos uma peça que levamos às escolas, mas este ano não foi possível porque, na altura, as escolas ainda não podiam sair em visitas de estudo por causa da pandemia. Então, gravámos a peça e disponibilizámo-la online. Este ano tivemos três espetáculos online, sendo um deles infantil, destinado às escolas.
Que projetos, focos e atividades tem desenvolvido a Dancenema desde a sua fundação?
A nossa Associação nasceu em 2008, e desde essa altura temos vindo a desenvolver vários projetos artísticos, desde peças infantis para escolas e peças para Teatros. Levamos também algumas peças ao estrangeiro – já fomos a dois festivais no Brasil, e tivemos um intercâmbio com Cabo Verde, projeto desenvolvido em voluntariado (os professores eram voluntários). Estivemos duas semanas em Cabo Verde, em 2012, e houve um aluno que veio connosco para Portugal, onde teve formação. Este projeto chamava-se “Dança para a Comunidade”. Ainda que com algum custo, porque no Algarve ainda é difícil avançar, felizmente temo-nos conseguido manter em atividade. Este ano recebemos o apoio da DGArtes para a circulação de “Sem Retorno” e para o Festival Entrelaçados. Já tínhamos tido financiamento do 365 Algarve no primeiro ano de festival, e temos sempre apoio da Direção Regional da Cultura do Algarve nos vários projetos que desenvolvemos.
Este ano, o “Garantir Cultura” apoio ainda outra peça para crianças, a “Monstros Marinhos”. Aos poucos vamos conseguindo, mas sinto que no Algarve é mais difícil que abram as portas. É difícil chegar aos Teatros, por vezes não temos respostas. Mandamos vários projetos e muitas câmaras não respondem. Sinto mesmo que há uma resistência, que não há uma abertura fácil a estes projetos, apesar de já sermos uma associação com vários anos. Ainda sinto que, por exemplo, se mandar uma proposta a uma câmara municipal que não nos conheça, dificilmente lerá o projeto, a nossa proposta.
Que possíveis razões estão subjacentes a essa “resistência”?
Acho que os próprios teatros não têm assim tanto financiamento. Por vezes sentimos falta de material. Em vários teatro tivemos de levar materiais nossos, e que num Teatro bem equipado existem. Noutros, sinto que há poucos técnicos empregados. Há toda uma falha de estrutura e falta de apoio que depois refletem-se na menor vontade de acolher espetáculos.
Falo com algumas colegas sobre criar um coletivo, mas quase todos os jovens que se vão formar para Lisboa não querem voltar para o Algarve porque não há assim tanto trabalho. Acho que esta geração já está a fazer mais coisas, só que ainda sente muita resistência. Sinto que, muitas vezes, só o conseguem realmente através de conhecimentos: um jovem que se forma e quer criar um projeto não tem alicerces porque não conhece pessoas. Devia haver um espaço onde jovens pudessem apresentar os seus projetos e serem vistos, porque, por vezes, é mesmo difícil começar. Muitas vezes, trazem projetos válidos e interessantes, mas sem oportunidades de os apresentar. Temos uma rúbrica no festival, a Mostra de Solos e Duetos, que é precisamente dedicada a jovens criadores, para que possam apresentar as suas peças. Terem uma oportunidade de irem a palco, que por vezes é difícil. Já tivemos jovens de Espanha e alguns alunos franceses que estavam a estudar em Lisboa.
Aliás, durante os primeiros festivais tivemos uma Tertúlia após os espetáculos. Nesta última edição, não o pudemos fazer devido ao vírus. Tentámos promover estas tertúlias porque apercebemo-nos de que muitas pessoas não gostavam dos espetáculos porque não percebiam. É importante a parte da conversa com o coreógrafo para que as pessoas tentem colocar questões, se sintam mais próximas da peça ou a percebam melhor. A Dança Contemporânea, como é um pouco abstrata, há pessoas que dizem que não percebem, que não gostam e não querem voltar. E a ideia da conversa tem mesmo esse propósito: desmistificar essa ideia.