A linha ténue entre liberdade de expressão e bom senso | Crítica

Fotografias por Rebeca Fernandes e Ana Catarina Neto ©

 

A arte é um meio de expressão que mudou muito seu parecer ao longo da história. Isso aparenta-me uma busca dos apreciadores de ambos os lados em contestar e criticar uns aos outros. A liberdade de expressão caminha cada vez mais ferida, seja pela sua utilização indiscreta e retrógrada, como maneira de justificar preconceitos e ofensas, ou seja como forma de protesto indiscreto para com aquilo que não agrade a um ou a outro.

O âmbito que mais aflige-se com este fogo-cruzado seja talvez a comédia. Vinda de uma era onde tudo era justificável de zombaria, estes espetáculos já vêm há alguns anos a metamorfosear seu estilo para integrar-se nas ideologias do século XXI. O que antes era apenas uma apresentação de ofensas vulgares, passou a ser um contexto diferente. Outrora, os “alvos” e temas a serem discutidos eram normalmente as minorias sociais, o que impulsionou a ideia da comédia ser um meio pejorativo para diversas pessoas. Nos últimos anos, esta ótica passou a ser vista como o oposto. Os antagonistas começam a ser as maiorias privilegiadas, o que tornou o conceito de humor uma arte voltada para a "autocrítica".

 

Mesmo com a ascensão da crítica pessoal e direta, ainda é perceptível uma grande gama de casos ligados à ofensa e à problemáticas sociais, até mesmo gerando relances de violência e desconforto. Um dos mais recentes eventos ocorreu na Cerimónia dos Óscares de 2022, onde o ator Will Smith reagiu com uma bofetada em Chris Rock, após o comediante dirigir uma piada à sua esposa, Jada Smith, criando uma referência ao longa G.I. Jane (1997) por conta do quadro de alopecia de Jada.

Mesmo durante a cerimónia, os espectadores do mundo todo dividiram-se a respeito desta atitude. De um lado, os defensores da liberdade de expressão e da licença poética a afirmar que a atitude de Will Smith fora banal e excessiva, e que todo o ocorrido não passava de uma “anedota”. Por outro, houve aqueles que afirmaram que o comediante havia passado dos limites e do bom senso, justificando portanto que o ator se exaltasse. Independente do ponto de vista, o evento repercutiu em diversos sites noticiosos e de crítica, ora a procurar defender um lado, ora a aliviar o outro.

 

Este tema voltou à tona recentemente pela declaração da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de que Will Smith encontra-se banido de qualquer celebração durante 10 anos, o que implicou mais um fluxo enorme de debates sobre a decisão, segregando novamente os “analistas de plantão” e também alguns artistas que posicionaram-se a respeito ao longo destas duas semanas.

O grande fator que tem sido abordado é um dos questionamentos que existem a mais tempo no mundo cómico: qual é o limite do humor? Este tópico nos traz à uma reflexão imensa sobre o quão correto ou não é fazer piadas sobre um quadro físico, como a alopecia de Jada, e principalmente o quanto a reação de Will naquele momento complexo foi justificável ou excessiva. O problema desta abordagem direta é que, ao invés de uma decisão e percepção crítica sobre o ocorrido, a julgar que nenhuma das partes estava correta em suas ações, o público geral dividiu-se apenas em um embate entre quem estava correto e quem estava errado.

 

Para além dos espectadores, os meios noticiosos também abstiveram-se desta visão abrangente, e passaram a retratar os fatos com exatidão parcial, dividindo-se em uma aquarela monocromática, e replicando as informações de uma forma mecânica. O excesso de exatidão apenas acarretou em percepções insensíveis destes fatores.

Este talvez tenha sido um dos maiores mártires da sociedade ultimamente, onde o critério para definir se algo é certo ou errado baseia-se apenas em uma questão ideológica, enquanto o senso comum e a imparcialidade são deixadas para além. A liberdade de expressão é, apesar de delicada, um valor assertivo, que deve ser retratado com respeito e seriedade por ambos os lados. A extravagância que tomou principalmente a internet e os jornais apenas nos mostra o motivo real de ainda termos questões como “o limite do humor”. Encontrar um lado correto na história não passa de um conflito desnecessário, que apesar de bem estruturado, no fim do dia não nos leva à nada.

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