Girândola, Tômbola de Vontades e Silêncio

​1. Devo começar por confessar que na noite de ano velho de 2019 para o dia de ano novo de 2020 não tinha comigo as doze uvas-passas, o que para alguém supersticioso, como sou, é crime de lesa-majestade. Desta vez — depois de todas as provações do ano que passou — preveni-me!


Nunca pensei poder ter, à meia-noite, mais passas na mão do que pessoas a concelebrar a entrada no novo ano. Uma mão cheia de passas numa sala vazia. Contudo, aquando das badaladas, nós, os três convivas a partilhar a noite, pudemos observar espantados, de uma estreita varanda de vistas largas para a imensa Lisboa, inúmeros e inesperados fogos de artifício. Agarramos panelas e com pronúncia nortenha batemos frenéticas e barulhosas pancadas contra os maus olhados. Fizemo-lo com fúria e profunda convicção! O que poupei o ano passado em doze passas, estraguei nesta passagem de ano em panelas e num funil, que ficou todo picado e amolgado! Eis a simples inferência: se a tradição afirma que o barulho afugenta os maus espíritos, julgo que resultou, pois, sendo eu um espírito meio inclinado para o mal, fiquei logo meio azamboado com tanto estrondo. Harmonizamos, notavelmente, o nosso troar metálico com o restante estampido de tachos e testos em outras varandas de tantas outras histórias.

2. Habitualmente, a saúde é desejada como condição de possibilidade para a vida, este ano parece-me ter sido desejada como um fim em si mesmo. Aspiramos ter "só" saúde, per si! Todavia, respeitem-se as superstições e não se revelem os desejos que nos vieram ao espírito. Até porque nunca acertei muito o compassar de um desejo por cada uva! Sentencio: não se deve desejar de boca cheia. É confuso e pouco eficaz!É que nem se deseja convenientemente, nem se mastiga com primor. Fica-nos a boca como uma tômbola de vontades amalgamadas. Baralha-se tudo na confusa imaginação, quer pinceladas de futuros projetos soltos, quer realidades presentes pelas quais estamos gratos, misturam-se sonhos e prazeres, desenhando a nossa utopia, algo como: Ser europeu com uma língua própria, celebrada entre tantas outras num único mundo. Ser vegetariano ou pelo menos não devorar animais selvagens capturados e vendidos em mercados sem condições éticas nem de higiene. Circular de transporte público, por não compensar andar de transporte privado (ou tolerar a lentidão de uma caminhada a pé).

"No fim da noite guarda-se um silêncio, antes do adormecer e do sonho, se o houver, e nesse silêncio visito um Panteão de Palavras. "​


Ter uma renda mínima que não depende do que se produz e, querendo, a lei permite trabalhar quatro dias por semana e optar pelo teletrabalho. Existem linhas de financiamento para quem quiser investir em negócios eco-sustentáveis, criativos e humanizadores. Os impostos pagam um ótimo serviço de saúde e escolar e ainda é reencaminhada uma percentagem solidária para países que necessitam de rendimento para suprir necessidades elementares de habitação, alimentação, escolarização e de saúde.Todos podemos transitar entre países sem carecermos de estatutos de refugiados, exilados, etc.
​A mobilidade é limpa e silenciosa. Unimo-nos mais pelas linhas férreas e veleiros, e menos pela aviação. Decidimos criar um corredor verde por toda a Europa para peregrinarmos pelos principais valores que nos unem: a natureza e a geografia humana.
Percebemos que o canto dos pássaros não conhece fronteira. A literatura europeia e do restante mundo é incentivada ou obrigatória em todos os currículos nacionais, como diferentes e imaginosos pontos de vista inteligíveis e emocionais sobre tudo... Hajam uvas para tanto!


3. No fim da noite guarda-se um silêncio, antes do adormecer e do sonho, se o houver, e nesse silêncio visito um Panteão de Palavras. Todas nostalgia e ternura. Recordamos o filósofo Eduardo Lourenço, o seu vagar e pensar profundo, o seu olhar montanhoso e logos gutural. E os tantos que partiram. (Letra morta, mas palavra viva!) Impõe-se trazê-los à memória (esta que é uma sala de gala no coração). Na grande festa há música, há diálogo e comungamos pelo verbo com os que, tendo ido, ainda vivem na nossa narrativa comum — gerando uma realidade altaneira e bela.


FONTE Rui Rego FOTOGRAFIA ”Desejos” de Inês Carvalho
Rui Rêgo

Investigador Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), desenvolve a sua investigação de doutoramento em ética e política no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CFUL). Integra inúmeras associações académicas e civis, tendo sido anteriormente Investigador no CLEPUL — Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do IECCPMA — Instituto Europeu Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes

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