“O movimento das coisas” num tempo de motores imóveis
Entramos num novo ciclo. Aos sinos da torre altaneira tocados à mão, faz sombra a alta chaminé da fábrica de papel que zumbe às seis horas da tarde.
Vi, no cinema, “O Movimento das Coisas”: um acontecimento notável neste tempo de imobilismo pandémico!
O filme rompeu com o quotidiano não só por ser um regresso ao Cinema, mas sobretudo pelo ritmado filme a que pude assistir.
Tratou-se, em primeiro lugar, de um mergulho no mundo sonoro da infância minhota, do tempo cíclico, natural, do luminoso sustento vital.
Surge depois a mecânica fabril, que parecia dar uma teleologia ao tempo: apontar um progresso no horizonte. E, afinal, deu-nos só o vício do consumo, o acumular do lixo, e o espantar das aves.
Entramos num novo ciclo. Aos sinos da torre altaneira tocados à mão, faz sombra a alta chaminé da fábrica de papel que zumbe às seis horas da tarde.
E há o dia dos fiéis defuntos em que se paga a reza em latim pela alma dos falecidos. E há a desfolhada, a música aguda cuja letra mal se interpreta. A refeição diurna das velhas e senhoras da casa, no seu claustro doméstico. A feira, um mercado como ocasião para dar uso ao dinheiro. Gabam-se os legumes, faz-se enxoval.
Pensaram os antigos que o rio Lima, no Norte, era o rio Letes, o rio do esquecimento. A imagem de capa do filme lembra o barqueiro Caronte. Este, aparentemente feminino, leva corpos da margem de um nevoeiro silencioso, onde todos aguardam, para o seu destino.
Quem nos leva à travessia neste tempo? A esperança ou o medo? Da outra margem, se a há, só se vislumbra o nevoeiro. Há o medo que tudo se mantenha igual, numa volta ao normal em que o chilrear se silencie novamente no horizonte pelo barulho das máquinas, cujo progresso tecnológico já não deslumbra como outrora. Apetece
revigorar a humana faculdade de começar algo novo ou surpreender um inspirador
movimento das coisas.
FONTE Rui Rego FOTOGRAFIA Rui Rego