O “bom apetite” de Epicuro na despensa infernal de Dante
Inferno
Não há ocasião em que deseje ou me desejem "bom apetite" sem que algum laço se me dê na cabeça e um nó no estômago. Explico. Talvez por ser enfezado e pouco dado a gulas do palato, o apetite sempre me tenha sido fundamental e a falta dele indício de doença ou tristeza. Todavia, o que desejamos com um “bom apetite”? “Boa fome”? Os votos nada dizem da refeição, mas do apetite ele mesmo. Trata-se, assim, de um desejo que exige mais reflexão filosófica do que degustação de alimentos. O filósofo Epicuro, que identificava o prazer com o bem e a dor com o mal, aconselhava a rejeitar-se temperos exagerados.1
Diríamos: se tivermos prazer a saborear um pão, será mais fácil repetir esse prazer do que se tivermos prazer com caviar ou trufas brancas. O hedonismo epicurista foi maldito ao longo da tradição. Dante, que terá colocado no Paraíso o único papa português (até ao presente), condenou ao sexto círculo do Inferno Epicuro e os seus discípulos. Não foi pela defesa de prazeres, mas por a escola epicurista defender a mortalidade da alma:
No cemitério desta parte estão
com Epicuro todos seus sequazes
que a alma com o corpo morta dão.2
Contudo, se “a última bolacha do pacote” é a mais apetitosa, por ser a última, então, não haverá melhor pedagogia para os epicuristas defensores do bom apetite que a tese da mortalidade da alma. Devendo todos saborear tudo como se fosse a última ceia ou aproveitar os simples prazeres mundanos, indo ao encontro da sentença da minha tia-avó, que atravessou as fomes das duas grandes guerras: “não deixes para amanhã o que podes comer hoje!”
Purgatório
"Quem não é para comer, não é para trabalhar". Nunca apreciei o círculo pouco virtuoso entre comer e trabalhar: como se trabalhássemos para comer e comêssemos para trabalhar. Que interesse poderia ter tal processo? Tinha razão a minha ilustre professora de Filosofia Moderna, para quem cozinhar tem algo que ver com o trabalho repetitivo de Sísifo. E afinal: “nem só de pão vive o homem”. A constelação Michelin deve traduzir o apetite de escapar ao absurdo da mesmidade. A arte da cozinha visa contrariar ou reinterpretar a máxima sapiencial reiterada pelo avô: “a fome é o melhor tempero”. Confesso que falar sobre calorias, propriedades dos alimentos ou proteínas não é uma conversa que considere nutritiva. Nem as fotografias de alimentos passam de natureza-morta.
Paraíso
Há um longo caminho entre o Inferno da fome e o Paraíso do tempero. Vivemos a contradição mundial entre famélicos e a criatividade dos paladares. E a moral coloca todos na mesma mesa redonda. Pode o valor de uma caríssima refeição servir o palato apenas de um só, quando poderia retirar da subnutrição centenas? Podemos comer o que entendemos ou há uma alimentação imoral? É fundamental trazer A Razão à Mesa.3 O uso público da razão coloca à prova certos hábitos alimentares desinformados, hipócritas ou incoerentes. No caso próprio, as alterações alimentares trouxe-as essencialmente Milady, convertendo-me pelo estômago, com o seu tempero afetivo, consciente do combate ao desperdício, origem e modos de produção dos bens alimentares, etc. O amor também pode ser um argumento honesto.
Em suma, na era da alimentação, ter um bom apetite é um assunto grave e sério. O “bom” tem um carácter moral inescapável. A sede de perfetibilidade e o apetite imaginoso ou criativo são ilimitados. Todavia, a miserável fome e o consumo de recursos naturais (perturbando ecossistemas) devem ter um limite, merecendo ponderação sobre a nossa ação.
Até porque, se há algo que resiste da epopeia de Dante, setecentos anos depois da morte do poeta, é a tese de que o erro humano é vasto e o Inferno espaçoso.
1 “Consideramos a auto-suficiência um grande bem, não porque tenhamos sempre de fazer uso de pouco, mas para que, se não tivermos muito, o pouco nos baste”. Epicuro, Cartas, Máximas e Sentenças (Lisboa, Edições Sílabo, 2009, p. 114).
2 Dante Alighieri, A Divina Comédia, Canto X, 13-15. Seguimos a tradução de Vasco Graça Moura (Lisboa, Quetzal, 2011, p. 103).
3 Cf. esta premiada obra — Razão à Mesa (Lisboa, Esfera do Caos, 2015) — de Ricardo Miguel, a quem devo grande parte da introdução à consciencialização para a ética na alimentação.