Sem mais delongas... a ladainha do Adeus e o namoro do até logo

1. Há certas coisas que pela sua verdade não me saem da memória. Na baixa de Lisboa, ouvi uma conhecida nossa, espanhola (do País Basco), dizer que a sua maior dificuldade, quando veio viver para Portugal, foi despedir-se das pessoas ao telefone. Muitas pessoas ofendiam-se por ela dizer "Adeus" e desligar o telefone! Ela despedia-se e desligava, sem mais! Diz que os nossos fins de conversa telefónica são demasiado longos. Tive de lhe dar razão. Pois despedimo-nos em várias etapas: "Então adeus, um abraço, fiquem bem, cumprimentos à família, e como estão todos? Muita força, etc." Por vezes a demora no término da chamada é tanta que se volta a engatar a conversa com temas de que nos lembramos entretanto. Talvez isso justifique as delongas no final da chamada: queremos ter a certeza de que não nos esquecemos de nada. Nada fica por dizer! Esta sua observação iluminou tanto os meus telefonemas que agora, quando me atraso com alguém nas despedidas telefónicas, ainda tenho de contar esta "história-facto-observação". Nem todos os portugueses são assim. Milady tem a frieza de se despedir num rompante e desligar sem mais. Milady não me nega o romantismo, o namoro, de um "até logo", com certa saudade, pois um "até logo" parece pressupor que nos voltaremos a falar "logo". Há ainda aqueles com quem, nada mais havendo digno de registo (como sempre diz o meu pai), encerram conversas num "adeus-bate-com-a-porta" ou num "adeus-e-vira-costas" que tudo acaba sumariamente.

2. Sobre as nossas despedidas, perturba-me uma certa expressão de que nos servimos, quase automática: "até amanhã, se Deus quiser". Tem esta despedida um agridoce: por um lado, um gesto de confiança sobre o que virá — "o futuro a Deus pertence"; por outro lado, uma desconfiança em relação ao divino, pois que razão teria Deus para que não nos víssemos amanhã? A possibilidade da morte fica subentendida. Incomoda a ideia de um último Adeus. Em suma, esta forma de despedida coloca vida/morte numa equação 50/50 sujeita ao alvedrio divino. O filósofo Agostinho da Silva (1906-1994) pensou em outras expressões quotidianas, igualmente existencialistas, sobre o porvir, que muitos empregam: "se amanhã estivermos vivos; se lá chegarmos; oxalá possamos lá chegar". Numa das suas notáveis Conversas Vadias destacou entre os portugueses pessimistas — que "estão tocando o pessimismo como quem toca guitarra" — o hábito de estes lembrarem a iminência da morte "como se estivessem dando à vida, que é monótona para eles, um tempero excitante de poderem não estar vivos daí a uns minutos". Enfim: "Vamos à vida que a morte é certa!" e, afinal de contas, o Adeus é condição e prenúncio da saudade.

3. O online não permite o romance telefónico que se prolonga em detalhes. As reuniões digitais impossibilitam aquelas conversas feitas de atropelos e de uma certa balbúrdia barulhosa. Cada um é obrigado a falar na sua vez! Contudo, ainda assim, propicia-se, no fim dos ajuntamentos através do ecrã, a ladainha do Adeus. Um ilustre amigo dizia-se indignado por na infância ter rezado a ladainha, enumerando os vários santos: São João, rogai por nós; São José, rogai por nós; etc. O que o frustrava era, no fim da ladainha, dizer-se algo como: "todos os santos e santas, rogai por nós". Se era para no fim sumariar nesta expressão geral — "todos os santos e santas" —, qual a razão para se perder tempo a enumerar pelo nome próprio diferentes santas e santos? Confesso que apesar deste comentário lógico, aprecio a ladainha pelo belo mantra hipnótico que constitui. Por analogia com o nosso assunto, quem não se despede com um "Adeus", geral, abstrato e final, mas com cautelas e cuidados, anexos ao diálogo e notas de rodapé retóricas, ou "só mais um parênteses", também não pretende poupar tempo. A ladainha do Adeus, no Zoom e em outras reuniões online, não deixa de ser caricata. Cada alma despede-se na sua vez, sem se poder substituir essa ladainha do adeus por um mero "adeus a todas e a todos". Também eu chego a preparar a minha voz, antes do fim da reunião, para, naquela que é, não raras vezes, a minha única intervenção proferir solenemente: Adeus a todas e a todos!


1Transcrições da entrevista concedida por Agostinho da Silva a Herman José, no âmbito do programa televisivo Conversas Vadias episódio 10 (aconselhamos o visionamento desta entrevista com prazerosas deambulações especulativas).

Rui Rêgo

Investigador Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), desenvolve a sua investigação de doutoramento em ética e política no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CFUL). Integra inúmeras associações académicas e civis, tendo sido anteriormente Investigador no CLEPUL — Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do IECCPMA — Instituto Europeu Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes

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