“[‘Hotel Paraíso’] acabou por ganhar uma ideia de hotel europeu em ruínas; de hotel apalaçado numa Europa em ruínas”

Fotografia © Alípio Padilha

Estreou em novembro de 2021, no Teatro Municipal Baltazar Dias, Funchal. Passou pelo Teatro Estúdio Idelfonso Valério, em Alverca, e pela Escola de Mulheres, em Lisboa, em dezembro. No passado sábado, 12 de março, rumou a Sul, até ao Teatro das Figuras, em Faro. Chama-se Hotel Paraíso e é a mais recente criação da SillySeason - coletivo de artistas financiado pela Direção Geral das Artes e formado em 2012 por Rita Morais (até 2016), Ana Sampaio e Maia (até 2018), Ricardo Teixeira, Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva. Com o texto e direção de Cátia, Ivo e Ricardo, à interpretação de Hotel Paraíso juntam-se Ana Moreira, Paula Erra, Rafael Carvalho, Ricardo Teixeira e Vítor Silva Costa. O vídeo é da responsabilidade de João Cristóvão Leitão, a cenografia da Silly Season, figurinos e adereços de Inês Ariana, música de Ricardo Remédio, apoio ao movimento de Rodrigo Teixeira, desenho de luz de Paulo Santos, operação de luz de Ema Brito, produção de Inês Pinto, design gráfico de Rui Miguel Rodrigues e fotografia de Alípio Padilha.

E se, afinal, este sentimento que julgo ter criado for postiço? Se o cultivo não for mais que esforço oco e estéril? E se, afinal, a minha família for, sim, a conformação e a obediência a um ‘ideal de família’? E se os corpos que venho angariando não são se mais palmeiras com que ornamento a ilha que afinal sou? Eis algumas das inquietações que movem Hotel Paraíso, que aparentam individuais mas que são de todos e se exteriorizam numa suíte de hotel que afinal o não é - que pode ser qualquer lugar.

Há uma vida de plástico amorfo, quase isenta de tacto - de pele? Há uma burguesia indiferente e decadente, mergulhada nessa vida postiça, nesse cultivo oco e estéril, nessa ilusão de laços líquidos e efémeros, de mundos vãs, agoniada pela hipótese de o retrato que fica para a posteridade não ser o mais asseado possível, de não esconder os podres, de o verniz estalar - oxalá o designer de memórias os acuda. Posteridade. Essa que também é vã, tingida por um clima maltratado; por um planeta maltratado; posteridade que é já hoje - quando é que ela começa, afinal? Se nela pensamos, não será mais presente que futuro? Quão dista este retrato do real? Quão soa a presente? É Hotel Paraíso, um poema-carta à Humanidade escrito a várias mãos, em vários tempos, incluindo o nosso - este que nos é palpável. Este que respiramos - a custo.

Perante uma realidade e num tempo tingidos, resta-nos imaginar? Se sim, para quê? Para que possamos assistir a Hotel Paraíso, dir-se-ia. Às suas maneiras alternativas de governar, viver. Ao seu estado de alerta. Ao seu apelo.

São impressões que ficam depois de assistir à peça, e a elas juntam-se as de Cátia Tomé e Ivo Saraiva, numa conversa que abaixo se transpõe.

Europa? Desconheço esse laboratório, aqui utilizamos outro tipo de sonho. Agora pode entrar.
— Hotel Paraíso

Fotografia de Rebeca Fernandes © Epopeia Brands

O que vos levou em 2012 a criar a Silly Season?

ISS (Ivo Saraiva e Silva) – Na altura, há 10 anos, eu, a Cátia, o Ricardo e mais três pessoas estávamos juntos numa escola – a Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa. Quando acabámos o curso, quisemos muito apresentar um espetáculo nosso, mostrar o nosso trabalho. Então, juntámo-nos e criámos um espetáculo ao qual chamámos ‘Silly Season’. Entretanto, achámos que esse poderia ser o nome da companhia. Começámos a fazer um espetáculo atrás do outro, e a reconhecermo-nos como uma companhia de teatro. Sempre quisemos ser uma companhia de teatro que não fizesse teatro em exclusivo, ou seja: o nosso tipo de trabalho procurou sempre conjugar o teatro com outras disciplinas, outras matérias, como o cinema, a dança, as artes plásticas. Portanto, o nosso trabalho e os nossos objetos artísticos são compostos por muitos estilos. Tanto temos espetáculos de teatro, como curtas-metragens, instalações e performances.

Há tempos, ouvi de um amigo que um dos principais problemas na cultural em Portugal é a falta de uma programação transdisciplinar, que junte as artes. Subscrevem?

ISS – Eu já senti mais. Acho que as programações estão hoje a possibilitar outras formas de arte e outros formatos criativos. Principalmente com os festivais de artes performativas que começam a haver.

CT (Cátia Tomé) – Acho que isso passa muito pela política de públicos: a partir do momento em que preparas o público, começando pelas camadas mais jovens, para algo multidisciplinar, mais facilmente depois as pessoas estão preparadas para isso.

E nas camadas não tão jovens, também é importante essa preparação?

CT – Se essas gerações forem muito frequentadoras da internet e das redes sociais, é mais fácil, porque hoje já ninguém vai ver algo sem se informar minimamente do que é que vai ver. Tens acesso a tudo; é tudo mais fácil se conseguires fazer esse gesto – mas, há uma grande camada de população mais velha que não usa smartphone, que o não consegue. Nós temos consciência de que chegar a essa população é mais difícil, mas é precisamente essa que, acho, é importante agarrar e trazer para o Teatro. Tenho a certeza de que muitos não vêm por alguma desinformação ou dificuldades de acesso.

ISS – A mim parece-me que é aí que entra o papel das autarquias. Mais do que ter uma mega programação ou trazer nomes ‘xpto’ com um trabalho que junta várias disciplinas, tem de haver uma necessidade cultural: incutir uma necessidade cultural nas pessoas e equilibrar aquela necessidade de practicidade que existe hoje – de que tudo tem de ser útil. É claro que a Cultura é útil. É claro que a Arte é útil, mas não é útil no sentido de estarmos a consumir e ao mesmo tempo acontecer alguma coisa que tem consequências nesse consumo. Não! É uma coisa de longa duração e que não é palpável nem visível. Acho que a autarquia tem de ter essa responsabilidade de comunicar e incuti-lo à civilização que gere.

falamos muito de identidade, de minorias, de emancipação, do que é, afinal, uma inscrição no mundo e socialmente? 
— Ivo Saraiva e Silva

O vosso trabalho assenta muito na noção de crise. Propõe-se a desmistificá-la, a dar-lhe novas e alternativas dimensões. Que crises são ou podem ser estas em que se movem? São interiores, crises do Eu, ou…mais latas - crises políticas, sociais?

CT – A ‘crise’ caba por ser um tema central porque é um termo muito lato. Como cabe lá muita coisa, facilmente consegues puxar para aquilo que te interessa naquele momento falar. De alguma forma, a nossa geração está sempre em crise. Nós já nascemos em crise e às tantas vamos morrer em crise. É interessante pensar como é que essa crise se vai metamorfoseando ao longo da tua vida, para onde é que a deslocas ou que focos é que lhes queres dar. De que maneira é que ela influencia a tua vida, a tua experiência, a forma como tu te constróis e vives. Inicialmente, pegámos no conceito de crise porque achámos curioso o facto de nos termos formado no ano em que começam as sanções mais agressivas da Troika, depois de uma crise que já se alastrava desde 2008 e uma altura em que Passos Coelho diz aos jovens para emigrarem, que não há espaço para eles no seu próprio país. Foi um absurdo e um sinal de alerta. Alguma coisa só pode estar mesmo muito mal para levar o teu dirigente político – a pessoa que assume o poder e deve de alguma forma proteger-te e criar condições dar estabilidade, dizer-te isso; mandar-te embora. Os meus amigos, as pessoas com quem me dava e tinha estudado, foram embora. Outras, das quais reconhecia talento, também. Pessoas que poderiam dar muito. Nós precisávamos tanto desse know-how, ver essas pessoas todas a ir embora à procura de melhores condições de vida, melhores salários. Quem devia precisamente agarrar este know-how, agarrar estes jovens cheios de força e vontade de fazer diferente e para realmente pôr o país a andar para a frente. E ele diz exatamente o contrário. Isto marcou-nos profundamente enquanto coletivo que se forma num ano e decide ficar, custe o que custar. Pegámos então neste conceito, e às tantas percebemos que estávamos constantemente com crises novas. Que a crise parecia algo contínuo. Chegámos a 2022, e tem sido o apogeu das crises. Sinto que nos conseguimos apropriar muito bem desse conceito, no início quase de uma forma inconsciente ainda. Temos vindo a desenvolvê-lo, a estudá-lo e a aprofundá-lo, e agora já mais conscientes da sua importância, da sua relevância no nosso trabalho.

Acaba por ser uma resistência… (?)

CT – Uma resistência, uma resiliência, um statement, um enfrentar de um governo que diz que não há lugar para ti. Tu resistes e ainda vais hastear a tua bandeira, a bandeira da Silly Season.

ISS – Um ano depois de começarmos, em 2013, descobrimos um artigo muito interessante de Alexandre Melo, em que falava da impossibilidade de se fazer Arte pertinente na altura em que o escreveu.

CT – Há uma frase muito interessante que sai deste artigo: “os portugueses não têm corpo.”

ISS – Pensando na História da Arte, a Arte mais pertinente foi aquela que se fez aquando de grandes acontecimentos históricos, nomeadamente as guerras mundiais. Em vez da explosão – criar arte a partir de grandes acontecimentos, nós fazemos a implosão – arte a partir de acontecimentos que de alguma forma te colocam em crise, em deficiência, em insuficiência. Então, parece-me que esse tema da crise vem sempre connosco. Tanto pelo que nos aconteceu, como porque nós, histórica e socialmente, o vimos a acontecer – até porque depois isso resvala para as outras crises do Eu de que falas.

São intrínsecas, indissociáveis?

ISS – Sim. A crise existencial, a saúde mental… acho que também é daí que vem a crise identitária. Essas questões espelham-se nos nossos temas, porque falamos muito de identidade, de minorias, de emancipação, do que é, afinal, uma inscrição no mundo e socialmente? Tudo isto vem de um discurso de crise.

CT – Também tem a ver um pouco com o facto de estarmos a crescer e a construir as nossas personalidades à medida que vamos construindo o nosso corpo artístico. Sinto que começámos muito novos e que ao longo deste tempo temos vindo a construir tanto a nossa personalidade enquanto ser humano, como enquanto artistas. Quando estás a posicionar-te no mundo e a interrogar-te ‘quem sou eu?’ e ‘o que estou aqui a fazer?’, estas questões também resvalam para o teu trabalho. Não conseguimos dissociar essas questões. Também nos fomos construindo enquanto pessoas aqui dentro.

é fundamental o nosso papel social enquanto pensadores, pessoas que questionam, pessoas que, de alguma forma, durante muito tempo não se conseguiam impor e fazer-se ouvir.
— Cátia Tomé

É pela Arte que reagimos, gritamos?

CT – É fundamental. Tens uma voz, de alguma maneira. Tens um público. Isso tem um lado perverso, se bem que acho que o artista não deve estar a criar a pensar no público. Quem é este público? Também não sabemos qual é. Mas é fundamental o nosso papel social enquanto pensadores, pessoas que questionam, pessoas que, de alguma forma, durante muito tempo não se conseguiam impor e fazer-se ouvir. Não quer dizer que o tenhamos conseguido, não é isso. Até porque há países que valorizam muito mais a Cultura do que o nosso. E são países que nós consideramos que intelectual e culturalmente estão muito mais à frente. Por alguma razão é. As coisas estão interligadas.

ISS – Mais uma vez, tem que ver com as autarquias e com as entidades que estão a gerir esses espaços territoriais, porque sinto que os territórios têm bons equipamentos, as pessoas têm vontade de consumir, só que ou não têm acesso, ou o pouco que têm é dirigido a coisas comerciais – ainda que o comercial também tenha de existir.

CT – Tem de haver uma democratização nesse acesso.

 

Uma popularização? No sentido de o tornar mais próxima?

ISS – Sim, lá está: é um caminho muito longo, que se faz muito devagar e que pede muita paciência e sensibilidade. Temos agora uma colaboradora que está a estagiar e a desenvolver uma função muito recente - de mediadora cultural.  O que ela está a fazer e a estudar vai ser muito importante daqui a uns anos: estabelecer a ligação entre os artistas e os agentes culturais de certos territórios. Isto é muito importante porque sinto que há agentes culturais que não têm uma noção alargada do que é o plano cultural e o mapa cultural do nosso país.

Fotografia © Alípio Padilha

quisemos equilibrar esse esses dois espaços, e nada melhor que o espaço de um hotel, onde o público e o privado se confundem. Dessa forma conseguimos falar sobre questões quer do nosso íntimo, quer do nosso espaço comum. Esta é uma dinâmica com a qual gostamos muito de trabalhar: até que ponto é que as tuas inquietações individuais se podem alargar e tornar-se inquietações universais, e vice-versa.
— Ivo Saraiva e Silva

Entrando agora em ‘Hotel Paraíso’, como é que nasceu esta peça?

CT – Nasceu por volta de 2018, quando levámos “Testamento em Três Atos” à Madeira.

ISS – Fomos ao Balcão Cristal, o espaço de Paula Erra e Élvio Camacho, que por sua vez têm uma companhia chamada Teatro Feiticeiro do Norte.  Já conhecíamos o Élvio, mas nesse ano conhecemos Paula Guerra e apaixonámo-nos por ela. Quisemos logo trabalhar ou fazer alguma coisa com ela, e pensámos em criar um espetáculo que partisse desta relação entre a Ilha da Madeira e Portugal Continental. Lembrámo-nos de trabalhar este conceito de Ilha. Tu podes ser uma ilha enquanto identidade – novamente o conceito de identidade, e por sua vez da crise. A partir daí fomos pensando num projeto, até que chegámos a 2021 e começámos a sedimentar o espectáculo até à estreia. Chegámos então a este Hotel. Antes, fizemos dois projetos: num trabalhámos muito o espaço público que se imiscuía no espaço privado de cada um; noutro trabalhámos o espaço privado que, de repente, se abre para o espaço público. Aqui, em ‘Hotel Paraíso’, quisemos equilibrar esse esses dois espaços, e nada melhor que o espaço de um hotel, onde o público e o privado se confundem. Dessa forma conseguimos falar sobre questões quer do nosso íntimo, quer do nosso espaço comum. Esta é uma dinâmica com a qual gostamos muito de trabalhar: até que ponto é que as tuas inquietações individuais se podem alargar e tornar-se inquietações universais, e vice-versa. Neste sentido, a suíte de hotel permite-te desenvolveres todas as temáticas a que te propões: quando vais a um hotel percebes que é um espaço comum, onde passa muita gente, mas, ao mesmo tempo, é onde fazes muita coisa íntima e privada: onde tu dormes, tomas banho, fazes amor…

CT – Quando começámos e a pensar que hotel seria este, o nosso hotel acabou por ganhar uma ideia de hotel europeu em ruínas; de hotel apalaçado numa Europa em ruínas. Ainda que nos primeiros esboços a ideia tenha sido de motel americano – perdido no meio da estrada, no meio de uma planície infinita, em que de repente vês surgir néons e eventualmente uma bomba de combustível; aquela onda de dois pisos e de um não-lugar. Mantivemos o não-lugar, mas, em vez de ser à americana, seria este hotel europeu apalaçado, coisa que não existe na América ou, quando existe, é porque foi recentemente feito para imitar os europeus. Aqui, tens palácios que depois viram hotéis.

Fotografia © Alípio Padilha

Parece que já perdemos grande parte do ‘sonho europeu’ que havia. Aquela ideia de entreajuda, de construirmos um legado, juntos; o ideal, a utopia. E essa utopia tinha premissas muito boas e nobres. (...) Uma das conclusões que tiramos do espetáculo é a de que podemos estar despojados de tudo, podemos perder tudo – até a vida, mas não perdemos as ideias.
— Ivo Saraiva e Silva

Na sinopse da peça, fala-se de um conjunto de perguntas a responder, que é base de uma espécie de contrato que se assina para entrar neste hotel - identificação e documentação, semáforos identificados numa imagem, nacionalidade emocional, constituição do país interior, idade mental, classe mitológica, código moral. Sinto que o mundo está cada vez mais a tender para isso: para uma lista interminável de códigos e critérios a cumprir, com base nos quais selecionas pessoas ou decides quais as mais passíveis ou dignas de agir, fazer, aceder. Uma interpretação muito ao lado daquela que subjaz a ‘Hotel Paraíso’?

CT – Antigamente, o protocolo era muito exterior. Hoje, e cada vez mais, sinto que pode ser interno. Uma coisa é o que tu passas exteriormente, a olho nu; outra é o que passas, por exemplo, nas redes sociais.

CT – Lembro-me de, na altura em que começámos, fazermos muitas sessões de Black Mirror. Ficávamos depois a discutir os episódios, porque nos pareciam um futuro distópico, mas muito real, com muitos pontos com a atualidade. Hoje, há grandes empresas onde os recursos humanos já não contratam as pessoas pelo CV, mas com base naquilo que encontram e vasculham nas tuas redes sociais, porque a tua vida está lá toda. Ou seja, a tua entrada numa empresa é ditada, muitas vezes e sem tu saberes, pela história que tens no google; pela tua pegada digital. Por isso, esta também pode vir a ser uma entrada num hotel do futuro…

ISS – No início do processo, andávamos a ler o Regresso da Princesa Europa, de Rob Riemen, que começava com a Princesa Europa a chegar a um hotel. Quando ela chega à receção, o rececionsita pede-lhe os documentos. Europa diz que não os tem. O rececionista responde-lhe que, sem documentos, não pode fazer grande coisa, mas que vai fechar os olhos. Quando diz o preço, ela diz que não traz dinheiro consigo. O rececionista diz sem dinheiro é que não dá mesmo, ao que ela responde: “não tenho documentos, nem dinheiro, mas tenho uma coisa que nenhum de vocês aqui tem: tenho alma.” E foi aí que nós pensámos em transformar o nosso Hotel Paraíso num Hotel-Europa. Este hotel que é espaço comum e privado ao mesmo tempo, onde todos nós estamos abrigados. Estreámos este espetáculo no dia 20 de novembro de 2021, no Funchal. Na altura já fazia sentido, porque havia ali um espelho com o vírus, ainda que não fosse uma pretensão nossa. Hoje, se forem ver o espetáculo, é assustadora a forma como se relaciona com factos atuais. Parece que já perdemos grande parte do ‘sonho europeu’ que havia. Aquela ideia de entreajuda, de construirmos um legado, juntos; o ideal, a utopia. E essa utopia tinha premissas muito boas e nobres.

CT – E que eram princípios ótimos, principalmente porque nos foram impingidos quando éramos crianças. Nós crescemos com essas ideias.  Com o ideal de ‘sonho europeu’.

ISS – Uma das conclusões que tiramos do espetáculo é a de que podemos estar despojados de tudo, podemos perder tudo – até a vida, mas não perdemos as ideias. Apesar de estarmos todos a apontar armas uns aos outros, o que é um paradoxo interessante. Percebes que todas as personagens estão naquela suíte de hotel há imenso tempo, que de alguma forma estão cansadas e que exteriorizam esse cansaço; percebes que há uma ameaça fora do hotel, mas nunca se elas não querem sair ou não podem sair dali. Há uma confusão que nunca é revelada - é precisamente esse o intuito.

CT – Cada pessoa imaginará na sua cabeça o que quiser: antes, talvez pensavam na pandemia; hoje, na guerra, na Ucrânia, na crise migratória.

ISS – Isso também faz com que as personagens vão mudando de identidades todos os dias, todas as horas, todos os segundos. Numa primeira fase podem estar com uma identidade e numa seguinte com uma muito diferente, para se enganarem a elas próprias, para enganarem o tempo. E também para nos permitir discursar sobre esta vida de informação multiplicada, de estado acelerado em que nós vivemos.

CT – Inicialmente, a ideia foi a de nos colocarmos num futuro distópico não muito distante, mas com alguns elementos anacrónicos. Se nós pensarmos nos filmes de ficção científica que vemos hoje, já não é tudo computadorizado e hi-tech: colocam-te numa realidade completamente difetente, mas com elementos com os quais tu estabeleces relações emocionais de forma muito rápida. As roupas são rudimentares, parecem de há algum tempo; as relações entre mãe – filho. Estou a pensar no Dune. Gostamos muito desta coisa dos travellings no tempo.

Como se os tempos coexistissem?

CT – Sim! Como se o espetáculo fosse feito por camadas, e cada camada fosse um espaço-tempo específico. Perguntamo-nos: “se nós nos colocássemos nesse lugar distópico, como é que seriam as relações entre as pessoas?” Se calhar, elas não se casam, ou se calhar estão constantemente a casar umas com as outras e a divorciar-se, ou se calhar têm relações poligâmicas, ou se calhar elas nem sequer querem saber disso porque têm outras prioridades. Há uma coisa que é a natureza, o apelo natural, e depois a tecnologia e a coisa que é inventada, mas não deixa de entrar na natureza, de a influenciar. Ou seja, a nossa criação passa por criar universos alternativos, mas sem dar resposta. Assim, quando vais ver consegues na tua cabeça contar aquele bocadinho de história que falta. Ligar as pecinhas e ver os espetáculos todos que tu quiseres num só. Para nós é interessante deixar esse campo aberto. Nunca nos remetermos para um espaço ou um tempo concretos; esta é uma forma de criar histórias! E nós temos a nossa forma de contar histórias.

Sinto que esse é um dos problemas da forma pela qual nos ensinam História. Muitas coisas datas e situadas, o que nos torna meio que anestesiados. Como se as coisas apenas pudessem ter acontecido naquele momento, naquele lugar…

CT – É tudo muito organizadinho, por caixinhas, gavetinhas. Sabes que este tema está nesta gavetinha, que por sua vez está neste armário, e depois nesta divisão. Nunca fundes as divisões nem misturas os temas. É muito castrador e posiciona-te logo num sistema: tens de aprender assim, se não, vais ter negativa, o que se alastra para outras dimensões da sociedade. A forma como começamos a educar - que começa logo no contar histórias, dita logo esses princípios basilares e estruturais da sociedade.

Em Hotel Paraíso, falamos muito de racismo, sem falar. Tal como identidade de género e a nova vaga feminista, até porque este espetáculo vem também no seguimento de um espetáculo que fizemos sobre os loucos anos 20. pelos quais somos fascinados e que são comumente aceites como os anos da primeira vaga feminista. Algumas questões que surgiram quando começámos a estudar o feminismo desaguaram aqui, abrindo novas e outras questões. É um espetáculo também de conclusão, e nele trabalhamos o excessivamente teatral com o performático. Há claramente essas duas linhas.

Há pessoas que gritam enquanto atravessam um estúpido cenário de guerra. E as pessoas que gritam são as mesmas que matam, às vezes. Mas quem está calado também mata e mata bem.
— Hotel Paraíso

Fotografia © Carlos Silva

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