Helena Madeira: “a sonoridade da harpa e das minhas composições é um convite à vivência do momento (…) a regressar à essência do som”

Helena Madeira é cantautora e harpista, e tem um dom de contar de histórias. Traz à luz do dia temas que tanto têm de hereditário como de novo. Uma das suas viagens, a travessia entre o Senegal e o Mali, deu origem ao seu primeiro álbum de originais, “Da voz do Embondeiro”. Ao longo da sua carreira, adicionou experiências ao seu percurso enquanto artista e transformou-se. Numa conversa intimista, a artista conta-nos um pouco da sua história, do antes e depois das suas viagens.

Através da tua música, compreendemos que existe uma ligação muito forte entre as experiências que viveste e as viagens que fizeste. África foi-te inspiradora. Fala-nos um pouco sobre esta experiência.
África sempre foi um destino óbvio para mim. Cresci lado a lado com os descendentes de caboverdianos e angolanos que chegaram a Portugal depois da independência das ex-colónias e criaram raízes nas periferias de Lisboa. Os anos 80 e 90 em Lisboa foram um verdadeiro ‘cocktail’ identitário e eu tive o privilégio de cantar morna e batuque com o mesmo à-vontade com que dançava o fandango ribatejano.

Acreditas que a música tem o poder de abrir o coração das pessoas? Foi esse poder que te atraiu para este mundo da música?
Ganhei essa noção ao longo dos anos, mas aconteceu comigo o que acontece com todas as crianças em tenra idade. A atracção e o fascínio pela música é natural no ser humano.

Quando é que tomaste a opção de te dedicar à música e de apostar na tua formação em canto lírico e harpa clássica?
Segundo conta a minha mãe, devia ter quatro anos quando acordei um certo dia e lhe disse “música”. Ao que parece, teria sonhado com música. Durante meses o mesmo aconteceu todas as manhãs, até que ela trouxe uma enciclopédia ilustrada de instrumentos e eu apontei para a harpa e disse “música”! Ela ofereceu-me uma flauta e explicou-me que não seria possível concretizar esse sonho, mas que que eu poderia fazê-lo um dia, quando crescesse. Foi na adolescência que comecei a acreditar que era possível seguir este sonho, e iniciei os estudos de canto, que mais tarde me levaram ao conservatório de música para canto e harpa.

Esse é um testemunho fascinante e que te conduziu ao mundo profissional. Vários têm sido os projetos em que participaste e os artistas com quem tens vindo a trabalhar. Foste vocalista da banda Dazkarieh e, em 2006, tornaste-te vocalista da banda de world music MU com quem gravaste dois álbuns. Que bandas foram estas para ti?
Estas foram as bandas que me validaram enquanto cantora e me ajudaram a ganhar auto-confiança. Sobretudo com os MU, viajámos na Europa e na Ásia ininterruptamente até 2013, o que me deu a saborear o mundo.

Em 2010, deste o importante passo de iniciar a tua carreira a solo. O que te motivou a fazê-lo? O que podemos encontrar de novo nesta fase de cantautora que não tínhamos hipótese de ver e ouvir nos projetos que tens vindo a integrar em colectivo?
O que me motivou, além do meu sonho de infância, foram os familiares e amigos, colegas da música que sabiam dos meus estudos de harpa e que, curiosos, me queriam ouvir. As minhas histórias, as minhas canções, que nada tinham a ver com as bandas que integrei. É normal que as composições de grupo tenham uma identidade coletiva. Quando comecei a escrever, debrucei-me sobretudo sobre as histórias na primeira pessoa.

Atendendo a este teu percurso pessoal e à herança dos projetos anteriores, podemos dizer que já percorreste os palcos de vários cantos do mundo e que já passaste muito tempo na estrada. Como é para ti andar em tour?
As digressões são um desafio. Por um lado, são a concretização da oportunidade de partilhar a nossa música com um público abrangente e de viver mais histórias e aprender mais sobre o mundo. Por outro lado, podem ser viagens muito cansativas e desgastantes, com pouco tempo para descansar entre espectáculos. É necessário aprender a gerir.

Falemos um pouco sobre o teu processo criativo. Nas tuas letras, ouvem-se várias referências à natureza. Que ligação é esta? É a natureza que te inspira e te ajuda nas tuas criações musicais?
Mais do que a natureza, é o mundo em que vivemos que me inspira. Não só a maravilha da vida animal e das plantas, mas o que o ser humano é capaz de criar. Hoje em dia é notório o impacto que estamos a ter sobre o nosso planeta. Mas a Humanidade é capaz de grandes feitos, e, além da destruição, também conseguimos criar magia nas mais pequenas coisas.

A sonoridade da tua música remete-nos bastante à meditação e à espiritualidade. Este acontecimento, de certa forma, acaba por ser um convite para os teus ouvintes?
É alucinante a rapidez e o excesso de estímulo do quotidiano da sociedade em que vivemos. As crianças conseguem concretizar múltiplas tarefas em simultâneo e apreendem cada vez mais conteúdos teóricos, como se os seus discos rígidos estivessem em clara expansão. O que é excelente pela sua versatilidade, também pode revelar dificuldade na concentração e realização de tarefas básicas que necessitem de aprofundamento. A sonoridade da harpa e das minhas composições é um convite à presença; à vivência do momento. A simplesmente estar e regressar à essência do som.

​Voltando ao tema das tuas viagens, o que procuras quando partes? Esperas encontrar algo específico no caminho?
Durante anos fui “viciada” em viagens. Partia para África Ocidental sempre que podia, andava em digressões, vivi na Escócia e em Itália. Era “viciada” no desconhecido, digamos. Esperava encontrar estímulo criativo pela aventura da viagem. Hoje em dia, também devido à necessidade de muita disciplina e determinadas rotinas para o aprofundamento da música, o meu desafio tem sido trazer esse “encantamento” e estímulo criativo da viagem ao meu dia-a-dia, mesmo quando não saio de casa!

A tua caminhada pelo mundo da música continua. Em que projetos te podemos ouvir, de momento?
Nos últimos anos, a maioria dos meus concertos foram a solo, na sequência do meu disco “Da voz do embondeiro”, de 2004. Isso permitiu-me desenvolver a minha identidade musical e ganhar confiança no meu projecto individual. Recentemente tenho explorado a sonoridade de outros instrumentos em conjunto com a harpa e que melhor se fundem com as minhas novas composições. No passado dia 8 de Março apresentei-me ao vivo em Faro, no Teatro Lethes, com vários convidados. Violino, Handpan, Kora e Cajon foram alguns dos instrumentos presentes. O feedback foi muito positivo, e vou continuar a essa exploração sonora. Por isso, quem me segue em concerto, poderá esperar encontrar-me com diversas outras sonoridades a acompanharem-me.

E nos próximos tempos, quais os desafios?
Estas parcerias musicais têm contribuído para que termine de escrever algumas das minhas novas composições, já com uma nova roupagem. O desafio é terminar de escrever aquilo que dará origem a um novo disco no decorrer do próximo ano. Editar um disco em português, que não será Fado, e com harpa, sem ser de uma irlandesa, e, ainda assim, se assuma no mercado das músicas do mundo. É um desafio, mas não é impossível.​

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