A maldição do Rei Midas, um quase toque e mais "dois dedos de conversa"

Walter Crane, 1893

"Quem gosta de saudações entusiásticas está agora legitimado a provocar "dor de cotovelo" nos seus pares, e a "dar com os pés" sem pudor."

1. Tenho pensado na maldição do Rei Midas, aquele velho soberano que desejou que tudo aquilo em que tocasse se tornasse ouro. Conhecemos o trágico destino a que a realização deste desejo conduziu o Rei, que deixou de se poder alimentar, pois, assim que tocava num qualquer alimento, este transformava-se magicamente em ouro. Haveria forma de ultrapassar a maldição? Poderia o rei receber um soro alimentar intravenoso? Usar luvas de ouro, impedindo o contágio aurífero por toque direto? Parece haver algo desta maldição nos nossos dias. Hoje, tudo em que tocamos não vira ouro, mas torna-se potencialmente contagioso. Sempre que coloco gel desinfetante nas mãos, o que é rotina em todos os estabelecimentos, recordo a maldição do Rei Midas, estando sempre a um toque do contágio.​


2. Cruzamo-nos, por estes dias, com aquele fresco de Miguel Ângelo: "A criação de Adão". Neste fresco está representado aquele quase toque — "Adão quase toca Deus" ou "Deus quase toca Adão". E há, nesta aparente proximidade, separada por um abismo, algo de angustiante. Deus está suspenso no abraço de vários anjos e de uma figura feminina, mas destacamos a tensão daquele quase toque entre as duas figuras centrais, um perto longínquo. No quadro é respeitada a distância de segurança, e é a esta vida de quase toque ou perto longínquo que estamos votados. E desrespeitamos essa formal distância de quando em vez. Contudo, quase nunca o fazemos sem trocar umas palavras sobre o assunto que motiva a separação. Quando encontramos conhecidos experimentamos um quase toque constrangedor. Estrebucho em gestos desconcertados para manifestar a vontade que tenho de tocar um amigo ou conhecido, mas estamos com restrições. Apreciei as inovações nos cumprimentos com alguma estranheza. Agora tocamos cotovelos e pés. Isto é, quem gosta de saudações entusiásticas está agora legitimado a provocar "dor de cotovelo" nos seus pares, e a "dar com os pés" sem pudor. Mas há saudade de apertar, com fibra, a mão daqueles que encontramos.

"​Morrem mais cedo aqueles diálogos de quase conclusão, que nos fazem perdurar numa rua fria naquela dança em que se diz "só mais uma coisinha"."

​3. Presos a dois curtos dedos de conversa — assim estivemos depois de vermos um filme de Buñel, O Anjo Exterminador (1962). Sem revelar muito a quem ainda não foi tomado por este filme, trata-se de um grupo de convivas impedidos de sair de casa depois de um jantar, por uma espécie de maldição, ou algo desta ordem. Para os ilustres leitores não será difícil imaginar tal confinamento doméstico, por isso concentro-me noutro aspeto, na dificuldade de nos apartarmos no fim de certas conversas, ficando como que presos a mais dois dedos de conversa. Estes momentos de convívio na despedida, pelo seu encanto, costumam ser demorados. Todavia, em dias em que uma saída é um ato heroico, bom, mas stressante, que exige preparação e cuidados de estranheza para com tudo o que encontramos, pessoas e objetos, talvez pelo cálculo de distâncias e proximidades morrem mais cedo aqueles diálogos de quase conclusão, que nos fazem perdurar numa rua fria naquela dança em que se diz "só mais uma coisinha". Neste tempo, parece mais difícil entregarmo-nos, confortavelmente, a mais dois dedos de conversa.​

Rui Rêgo

Investigador Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), desenvolve a sua investigação de doutoramento em ética e política no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CFUL). Integra inúmeras associações académicas e civis, tendo sido anteriormente Investigador no CLEPUL — Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do IECCPMA — Instituto Europeu Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes

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