Pedro Abrunhosa: “nós, os autores, temos sempre que encontrar maneira de sobrevivermos, de nos reinventarmos”

 

​Começamos pela questão inevitável depois de mais um concerto como o que aconteceu no Festival F: Qual foi a sensação de voltar a pisar um palco e ver uma plateia completamente organizada e com distanciamento? O Pedro tem sido um exemplo de resiliência e nunca se vergou face os desafios da pandemia…
Em primeiro lugar, começa a haver uma sensação, da minha parte pelo menos e creio também da parte dos meus músicos, de habituação a este paradigma. É um paradigma transitório. Pessoalmente, eu não estou a estranhá-lo, porque independentemente do que se passa à frente do palco, o espectáculo é sempre um momento de catarse. O actor que está em cima do palco deve considerar que a sala está vazia e que a sua performance é genuína. Portanto, ao encarnar aquele momento de transcendência - que é o que acontece num espectáculo, não necessita da multidão apertada num espaço conciso, ou seja, a arte existe independente da “comunicação”. Este é um conceito também filosófico, porque a arte e a comunicação são coisas muito diferentes. É claro que a arte tem esta função de levar as pessoas para um outro sítio, para um outro lugar dentro delas, ou, melhor, eventualmente até para um outro tempo. A arte consuma-se nas pessoas. Eu coloco-me na pele de um actor que está a interpretar Shakespeare, uma peça profundas como “Júlio César” ou “A Tempestade”: será a sua performance pior se a sala estiver vazia ou lotada? O texto é sempre o texto, perante 14 ou 1400 pessoas. Talvez possa haver uma contaminação da energia, mas não é o suficiente para provocar uma mutação ontológica do que se está a passar no palco. Eu sei que este é um discurso complicado, mas é a pura verdade. Quando chego ao final do espectáculo como foi o caso dos que aconteceram em Faro, Ovar, Coimbra, Ancião e Gaia, e chego ao camarim, a sensação é de que foi entregue, de que foi cumprido. Claro que é diferente da festa, é sempre uma celebração, mas a parte efusiva está mais limitada.

O Pedro já conhece Faro e já tinha atuado numa edição anterior do Festival F. Como foi a preparação deste espectáculo em particular?
Esse pressuposto de ter tocado no Festival F, para aquela multidão, aquela turma pujante, no bom sentido da coisa festiva, de partilha, de comungação... Eu tinha essa ideia, e arrastei-a comigo para cima do palco como a minha última memória do Festival F. Portanto, o meu reportório foi preparado à volta do mito do F que eu tinha feito, incoscientemente, no hotel. Ou seja, devia ter feito um espectáculo mais silencioso, mais acústico e sereno. Mas não estou arrependido. Tive pena de não poder fazer duas Noites F, para experimentar das duas formas.

De qualquer forma, acho que foi algo que o Pedro conseguiu constatar. A sensação que a nossa equipa teve do público foi de grande espiritualidade, ainda que com esse ritmo fervente que levava as pessoas a quererem sair da cadeira. A mensagem foi entregue, ainda que pudesse ter sido mais intimista.
Mas…acho que ainda podia ter descido mais fundo.

Nós, os autores, aqueles que estamos em cima do palco e somos os fazedores da nossa própria carreira, como é o meu caso, temos sempre que encontrar maneira de sobrevivermos, de nos reinventarmos.
 

“a Cultura terá sido apanhada ainda mais desprevenida, porque a cultura por si só já é desprevenida, ou seja: a cultura é desprovida financeiramente e portanto é apanhada desprevenida politicamente.”

 

Agora num contexto mais delicado e relacionado com uma mensagem que o Pedro passou no concerto, sobre esta noção da necessidade de olharmos uns pelos outros e de percebermos a realidade do sector cultural que os profissionais do espectáculo estão a atravessar. Na sua opinião, tem havido uma resposta sensível por parte das entidades e do governo no que às necessidades especiais e dificuldades do meio artístico diz respeito?
Eu acho que há aqui dois tempos. Há um primeiro tempo em que todo o sistema é apanhado por esta mutação e em que, portanto, somos todos atirados para uma situação de emprego precário. Atendendo a quem tem 100 espectáculos por ano, como é o nosso caso, e de repente passa a 14, a imagem não pode ser mais clara: há toda uma estrutura, que no meu caso é composta por 25 pessoas, que fica comprometida. Em primeiro lugar, há esse embate, eu escrevi um artigo sobre essa questão no Público chamado “A solidão dos que juntam multidões”. Se não me engano, esse artigo saiu logo na primeira semana da pandemia, e lança logo uma questão: nós, os autores, aqueles que estamos em cima do palco e somos os fazedores da nossa própria carreira, como é o meu caso, temos sempre que encontrar maneira de sobrevivermos, de nos reinventarmos. Eu fiz directos a partir do meu estúdio; fiz concertos online que foram remunerados; fiz uma série de iniciativas, que um técnico ou um instrumentista não podem fazer. Até pela própria visibilidade que cada um tem: o músico que é autor e dá nome a um projecto, como é o meu caso, se fizer uma iniciativa desta natureza, tem naturalmente muito mais projecção que um instrumentista que procure explorar a mesma via. E por isso comecei a monetizar este tipo de transmissões, mas, justiça seja feita, todo o dinheiro que foi ganho nesse período foi totalmente distribuído pelos meus técnicos e músicos. Para que eles não sentissem que estavam desempregados. Entretanto mudou: voltamos à estrada, ainda que precariamente, e foi nesse sentido que eu comecei um diálogo próximo com a Ministra da Cultura que eu acho que teve dois tempos: um tempo de uma certa reação teórica à questão - creio que também em termos de dotação orçamental a Cultura terá sido apanhada ainda mais desprevenida, porque a cultura por si só já é desprevenida, ou seja: a cultura é desprovida financeiramente e portanto é apanhada desprevenida politicamente. Eu propus à Ministra que houvesse uma articulação com o Ministério da Economia e que os trabalhadores intermitentes, no caso dos técnicos, que são trabalhadores sazonais e que para além disso vivem de juntar multidões. Nós, que vivemos de uma profissão, em que nos é pedido para juntar pessoas, se juntares 1000 recebes x, mas neste momento é-nos pedido que não juntemos ninguém. Portanto, nesse sentido é necessário que o Ministério da Cultura se articule com o Ministério da Economia, porque deixa de ser um problema do Ministério da Cultura e passa a ser da Economia pura e dura. Por outro lado, o Ministério da Cultura reagiu de forma lenta, e quanto a mim podia ter reagido de forma mais articulada com o Governo. Nesse sentido, fiz um apelo nos Prémios Play, em que disse ao Primeiro Ministro que olhasse para dentro do Ministério da Cultura para perceber de que maneira aquilo se estava a processar. Como sabe, o Ministério da Cultura está neste momento a trabalhar no Diploma do Estatuto do Trabalhador Intermitente, o qual é, aliás, uma reivindicação antiga, quer do sector, quer da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). Esta, cujo conselho fiscal eu presido há sete anos (cargo não remunerado), tem feito inúmeros reparos no sentido protocolar, no estatuto para o autor e num estatuto para o trabalhador do espectáculo. E esse estatuto está neste momento a ser trabalhado e creio que foi anunciado que ia ser finalmente homologado.

Agora veio um terceiro tempo, que é o tempo do dinheiro que vem da Europa. O Primeiro Ministro foi bastante claro sobre a excelência na execução deste orçamento que aí vem: nenhum cêntimo pode ser desaproveitado, e eu concordo. O que quer dizer que não estamos à espera que o dinheiro que vem da Europa, uma vez mais, seja capturado por projectos faraónicos, que são congregados quer por escritórios de advogados, quer por grandes empresas de Construção Civil, quer por grandes Sectores Lobbistas, e que depois não chegam ao verdadeiro cerne da Economia Nacional - que é composta pelos trabalhadores, e sobretudo pelos trabalhadores mais afectados, que são, curiosamente, aqueles que mais contribuem. E porquê? Porque são aqueles que inevitavelmente não podem deixar de pagar impostos, não podem contrair empréstimos, não podem negociar moratórias… O que faz mover a Economia para além dos empresários é, naturalmente, a força das pessoas. E nesse sentido, o terceiro tempo terá que ter necessariamente um fundo alocado à salvaguarda da vida das pessoas. Logo, é bom que este fundo contemple as fundações e as instituições que protegem os autores,os intérpretes e os trabalhadores independentes. Estou à espera para ver qual vai ser a legislação dedicada a este efeito. Portanto, diria que o governo reagiu a três tempos: um primeiro em que reagiu mal, um segundo em que reagiu assim-assim, e agora talvez melhore um pouco. Estou com alguma esperança.

É um balanço bem aprofundado sobre a sua opinião da actuação das entidades competentes. De um ponto de vista mais social, falámos de organizações, da forma que estas entidades responderam a esta crise. Pergunto se, de um ponto de vista mais antropológico, o Pedro acredita que estes momentos conturbados têm levado a alguma reflexão por parte das pessoas que possa contribuir para aligeirar algumas tendências que se vinham a comprovar exageradas. Será que voltamos a valorizar aquilo que interessa ou acredita que isto foi só uma coisa passageira que não vai causar grande efeito social?
Ilações morais desta pandemia eu não vou tirar, mas posso tirar ilações pragmáticas. As pessoas confinadas - o ser humano é um segregado social, nós somos segregados e precisamos de interagir, e, naturalmente, a nossa frustração aumentou, a dor aumentou, uma dor até física de pessoas que perderam os seus e não se conseguiram despedir. É uma dor psicológica brutal. O mundo mudou à velocidade da luz. Não se espera um mundo igual. E isso tem revelado algumas idiossincrasias muito especiais. Por exemplo, as redes sociais mostraram que são como um lápis que pode ser ideal para escrever um soneto, mas que também pode tirar um olho a outra pessoa. São uma tecnologia excelente, que pode ser usada no velho conceito Socrático, pelo livre arbítrio para o bem e para o mal. Têm revelado a tal ontologia das pessoas, as redes propagam muito o conceito do ódio, porque é fácil humilhar e odiar alguém que não vemos e não está à nossa frente, e torna-se um local de conflito, enquanto deviam ser um veículo naturalmente para a partilha, até para a sabedoria; para incentivar a ver filmes de Fellini e a ouvir mais Springsteen, em vez de lançar opiniões. A humanidade sofre do “Opinismo”, que é o contrário da teoria. Teoria é ter uma construção alicerçada sobre o determinado assunto, uma opinião é uma vulgar ideia deslocada. Em termos sociológicos, a pandemia revelou que o isolamento exacerba a frustração e, por sua vez, o único lugar onde as pessoas se podem encontrar, que é nas redes sociais, exacerba um certo discurso de ódio. Eu perguntaria… Venderam-se mais livros? As pessoas leram mais o que estava em casa? Quem tem filmes? Vi-os? Que tipo de séries é que viram na Netflix? Quando pego na Netflix e vou ver as tendências, não morro de esperança: esta pandemia não mudou o essencial da anima que motiva o consumo de produtos culturais. Aquilo que foi o tempo de recolhimento não foi se calhar acolhido por todos da forma como nós gostaríamos, mas serviu para algumas coisas. Quando vemos cinco milhões de infectados na Índia e simultaneamente na Nova Zelândia manifestações de protestos e a carga policial, percebemos, de facto, o que é que quer dizer a palavra “globalização” e percebe-se, agora, aquela velha frase que diz que “um bater de asas de borboleta num sítio tem efeito noutro lado do planeta”. Um pequeno vírus microscópico, num sítio, de repente assolou o planeta e tornou-nos todos bastante próximos. Não tão próximos como devíamos, porque há quem consiga passar o confinamento em óptimas condições, e há quem o passe com cinco filhos num apartamento.

​Quais os desejos para esta recta final de 2020 e como espera entrar em 2021? Qual a mensagem que gostaria de deixar?
O que é que eu espero para o final deste próximo ano faz-me sempre lembrar aquelas frases das miss Universo: “Quero paz no mundo!”. Não queria ir por esse caminho. Não sendo um cientificista, tenho muito apreço pela ciência. Portanto, com todos os prós e contras que têm havido no processo, eu não tenho dúvida de que se avançará nestes próximos meses no sentido de uma vacina. Neste momento, é melhor desejarmos pouco mas eficaz, do que muito e parcelado. Por outro lado, pessoalmente, tenho olhado para dentro. Fiz uma música que reflecte isso - chama-se “Tempestade”, e diz tudo: “Não estamos sós na tempestade, ainda há luz neste mar alto”. No fundo, é uma nota de vontade daquilo que eu quero que aconteça. Em termos artísticos e pessoais, ninguém passa bem por uma crise destas; vamos todos sair daqui diferentes. Aliás, eu li uma frase de Thomas Mann que dizia: “aquilo que define a humanidade é a doença”. Só perante o precipício é que a humanidade se define e reage. É curioso que este vírus não faça mal aos morcegos, que só faça mal ao ser humano. Somos definidos pelos vírus que nos atacam. Como diria o meu amigo Gonçalo M.Tavares, “no princípio era a doença”! Artisticamente isto é um motor de criatividade. Não sofro da algoritmização da música, não quero ser igual ou “moderno”. Acho que é sempre perigoso o artista sacrificar a sua identidade perante os meios e tendências. O artista é um transumante do tempo, a função do artista é pegar nas pessoas, hipnotizá-las e levá-las para outro sítio e esse não se faz com técnica, faz-se com personalidade.

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