Ainda bem que a Celeste não fumava | Crónica ao 25 de abril
I – Sem corpo
Bombas de gasolina abandonadas; igrejas vazias em geral, ainda assim gritantes para tantos; apeadeiros mudos onde comboios já não param, só passam; mãos dos que têm nas paredes dessas bombas, igrejas e apeadeiros o único leito onde repousar o corpo, nas beatas e restos de cigarro ligeiramente maiores que beatas a única esperança de suportar melhor alguns dos muitos segundos que lhes restam da noite fria. Constelação de pontos que agrupam as cercanias de cidades e outros lugares não tão povoados por onde corre este comboio que habito cerca de dois dias de cada mês. A par dele, o vento, que vêm tentando filmar as duas crianças que ocupam os lugares da frente, arrumadas à janela e circunspectas nessa que é a sua nova predileta forma de registar, ainda que o vento escapula, ainda que o único rasto que desse vento fica na câmara – prova de que ele passara de facto, sejam os ramos dos chaparros pendidos na direção contrária à que ele sopra. Nunca hão de filmar o vento, apenas os vestígios que deixa por onde passa, e por isso sofrem. Querem sair do comboio para ir filmá-lo de perto, mas não podem – restam-lhes as janelas, por onde olham o mundo que enquadram na câmara de acordo com a maneira que o olham. Quem sabe um mundo sem beatas-sustento, feito de vento palpável, que se apanha e deixa filmar, talvez macio, talvez áspero e estriado; a julgar pela forma como escapole, dir-se-ia viscoso. Um mundo melhor, um mundo mais uno – isso, pelo menos isso é certo.
Por mais que o comboio se mova e os lugares se alterem, as crianças reparam que algo há de comum entre todos eles, seja nas ruas, às janelas; em cartazes, em algibeiras ou à lapela: cravos. Mantenho-me em silêncio. Suprimo a minha presença do vagão para que este se deixe ocupar apenas pelas suas vozes. Carrego no botão rec, e registo a sua nova forma de registar. Dir-se-ia: capturo pelo som o olhar com que as crianças leem o mundo, e reproduzo-o:
- Avó, por que há tantos cravos na rua? Pergunta uma.
- Onde? Não vejo nada. Em todo o caso, um dia entenderás que são insuficientes, responde a avó que, mal acaba de pronunciar estas palavras, olha a criança como se arrependida; como se a sua própria sombra pairasse sobre ela ou de súbito se apercebesse de as ter exposto a algo tão mais pesado que os seus corpos de trinta quilos, e ainda mais pesado por se tratar de uma resposta demasiado vaga, proferida por alguém recentemente confuso com a insuficiência dos terços, possivelmente alguém a quem as igrejas já não gritam, desiludido com um mundo que dificilmente imagina lugar de reconciliação. Havia talvez pensado que só assim se preparavam aqueles corpos, ainda tão indefesos e delicados corpos, para as agruras que mais cedo ou mais tarde lhes virão ameaçar sonhos, derrubar encantos e relativizar a noção de liberdade; para amparar as quedas ou pelo menos amortecer os impactes. “É preciso informá-las de que terão de aprender a ser vigilantes do próprio corpo”, pensará ela; “é preciso dizer-lhes que o terão de defender das feras que são as mãos dos outros. Falar-lhes da vontade de sair do corpo, abandonar o corpo, uma vontade que se principia súbita, mas se arroja no tempo e se torna perigosa à medida que se vem arrojando.” Ainda assim, é cedo para lhes dizer que é quebradiça a redoma e fino o vidro que protege esse pedaço de carne crua que habitamos; surdos os ouvidos a que berramos quando essa carne vira campo de batalha para o qual não há treino e a defesa se faz pelo grito, o qual por tanta vez não chega a ser grito, mas silêncio que o vela, cancela. Um dia, oxalá se apercebam as crianças da soberana pulsão para a redução a chatices menores das dores que surgem do assalto dos corpos, e possam gritar; uma pulsão que vem de um lugar que está tão alto que se custa a ver e muito menos a chegar, mas que é fonte que emana trâmites que nos caem em cima sem darmos conta, que nos pedem provas – se não se viu a mão a atingir o corpo, não aconteceu; a gente precisa de provas, provas, provas, provas, porque nos papéis vindos dos altíssimos não há espaço para a dor e não basta a palavra – como se essa palavra fosse fácil de expelir e não tivesse antes e por tanta vez sido regurgitada por desesperança, e apenas repetida por conhecer demasiado bem o desespero que dilacera ainda mais quando abafado. Oxalá se apercebam e lutem, porque ainda há que lutar; porque frouxas ainda são as sementes dos cravos que plantamos e frouxas sempre serão enquanto o corpo for objeto de contrabando.
Esta avó sabe que as palavras que diz são para as crianças escada para o mundo, e por isso ama-as a medo. Cuida-as a medo. Com medo. Às crianças e às palavras. Haverá outra maneira? Em todo o caso, tudo pensa, mas nada mais diz. E as crianças, por não compreenderem as palavras, ficam pasmadas e nada mais perguntam. Inanimadas, tentam agora conviver no silêncio instalado e na confusão ainda maior que se infiltra nas fendas das suas frágeis estruturas, das quais se apercebem de ser mesmo frágeis quando percorrem com os dedos a cicatriz que a avó tem no peito e reconhecem que aquela pele não era dali até passar a ser para sempre. Ainda não sabem que virá a noite insone e surda e virá o abismo sobre o qual sentirão os corpos inclinados. Ainda não sabem, mas talvez pressintam; talvez a cicatriz que a avó tem no peito as tenha feito pressentir; tratado de preencher a vagueza das palavras, o interdito; de comunicar paratextualmente o que a linguagem falha quando tenta.
Com as mãos enroscadas, umas mãos muito pequenas de criança muito pequena, de gestos impreparados para se moverem no caos, as crianças engelham-se no colo da avó, como se procurassem nele a salvação para a cicatriz que ainda não têm ou para algo que ainda não sabem nominar, mas que nós, espectadores bem mais calejados e cientes dessas agruras e asperezas, já sabemos: a aflição súbita por imaginarem aquele colo a esvair-se; o medo do próprio corpo e de aquele corpo sempre quente se liquidar como quase todas as flores submissas a ventos fortes; de virem um dia a não ter a quem entregar o corpo e a vida quando as sentirem desajustadas.
No sentido inverso ao da marcha, vem um homem esquálido, enjoado pela viagem ou quem sabe pelos cravos que cheirara antes de deixar o apeadeiro e entrar no vagão; encorajado pelas cervejas em lata que havia comprado no bar do comboio, grita, em surdina:
-Isto dos cravos é tudo uma fantochada! Precisamos é de revolução!, espevitando uma das crianças, que vinham já ao colo dormitando:
- Ele também viu os cravos! Vês, avó?! Nós dissemos que era verdade.
Em redor, há os desconhecidos que entabulam conversa, principiada pelos lugares-comuns que, regra geral, facilitam o encetar do diálogo:
-Chove, hoje;
- É abril, águas mil, não é o que se diz?
Na fileira de bancos paralela à nossa está outro homem, este de boina e não tão esquálido; não demos por ele, mas havia ali estado o tempo todo, a escutar a conversa como se um fantasma voyeur que, diante da condição de ser fantasma e poucos ter a quem contar coisas, se limita a sobreviver das conversas dos outros. A medo, dirige-se às crianças:
- Hoje há tantos cravos na rua porque há 48 anos foi na rua e com cravos que passámos a ser livres.
- Livres? Mas nós não somos livres! Queremos sair deste comboio para ir filmar o vento, mas a avó não nos deixa!, principia uma.
- Se plantarmos cravos podemos sair do comboio?, pergunta a outra.
Girl on Train, Tarryn Cloete (2016)
II – Aparição
O homem leva a mão ao bolso, do bolso saca um cravo já ressequido e velho que estica em direção à avó:
-Tome, este já tem 48 anos. Está murcho, mas ainda tem cor.
A avó vê o cravo. Este cravo antigo é, aliás, o único que consegue ver. O homem não tem corpo, não há naquela coisa mal estruturada ossadas nem carne. O homem açambarca-se de todos os passageiros como nuvem, como se de uma espécie de aparição incandescente se tratasse, daquelas que aparecem e desaparecem e que poderiam ser maravilhosas se não viesse todo o enredo das tentativas de explicações, raios partam o Homem, que quer sempre respostas para tudo, que não se contenta com a sensação pela sensação; com a fantasia pela fantasia; olhemos o alegre que pela janela consegue ver alguns cravos; para a anciã que não consegue ver nenhum dos novos, e as crianças que veem todos.
Com a calma que pede o exercício de contar estórias a uma criança, e sabendo de antemão que elas, as estórias, poucos salvam, mas todos ajudam a suportar um pouco melhor o mundo, o homem (apesar da ausência de corpo, chamemos-lhe homem para simplificar) adianta-se:
- Apanhámos os malandros de surpresa. Eu estive lá.
- É o Capitão de abril! O líder do MFA! É o fantasma do Salgueiro Maia! Ouve-se do pica que, apavorado, desata a correr corredor adentro, rumo à cabine do maquinista.
- Quem vem na carruagem ri-se do pica e mantém-se sentado, confirmando que os ouvidos permanecem escutadores; a essa gente junta-se aquela que surge, vinda dos outros vagões, dos 24, 75, 43 e 52, todos eles – ainda não entendo a aleatoriedade dos números que se atribuem aos vagões dos comboios, e, de repente, gera-se um alvoroço que culmina numa multidão em torno das crianças, da avó, e do fantasma de Salgueiro Maia, que continua:
- Naquele tempo, havia um homem muito mandão que obrigava os outros, os que colocava abaixo de si, a cometer muitas coisas contra a sua vontade; coisas muito más, coisas que carregaremos para sempre, como uma nódoa daquelas que dificilmente saem da roupa por mais que se esfregue, sabem?
O fantasma fala de forma leviana porque sabe que os ouvidos de criança são os que mais o escutam. Sem pedir autorização, nós, espectadores, intervimos:
O Capitão de Abril fala é dos corpos sem escolha; dos corpos obrigados a matar os que habitavam lugares que nunca foram nossos e a arregimentar os corpos desses lugares a matar os próprios corpos – irmãos, primos, pais, enteados, amigos, ou simplesmente forasteiros partilhadores de sangue, em nome do português; corpos obrigados a brandir as armas e a elogiar-lhe a fúria; a erguerem-na em punho; a viverem dela – e pra quê? Para fazer reinar no país a recessão, deixando por aí a cochear aleijados de corpo e de mente, os das dores invisíveis, entregues a um stress pós-traumático que, por mais que se suavize, trouxe mazelas eternas - mas disso poucos falam, oxalá haja ouro e outros metais suficientes para se fundir e fazer medalhas, que lhes hão com certeza de funcionar como tranquilizante.
Fala dos corpos sufocados pela permanente acumulação do crime; da máquina vigilante instalada de inventar crime e punir ou matar por se pensar; por se canalizar esse pensamento para a arte e algum retorno disso se esperar; por se cometer esse delito inventado e tão perigoso, indesejável; da máquina de censurar e destruir palavras; de reduzir os corpos a uma mesma massa amorfa, homogénea; de converter pensadores em papa flácida, de os humildecer, porque perpetuar a humildade é multiplicar a ignorância e com ela a subserviência e a mudez – como sempre foi conveniente à repressão e ao fascismo que só migalhas deixa ao povo, ao povo pobre, ao povo que o país esqueceu, que só o corpo nutriu e mal, e não os bolsos para nutrir mais, nutrir noutros foros do ser; fala desse aparelho de gerar e procriar elites que vão à escola e conhecem o mundo pelos livros, enquanto o povo que os não sabe ler limita-se a ouvir o que outrem “ouviu dizer”, ou viu dizer naquela televisão latifundiária – perdão, comunitária – que serve o bairro e o seu dono; sem suspeitar que aquilo que conhece do mundo é apenas uma porção dele – um retrato por tanta vez infiel, interpretativo, angular, propagandístico além de sempre subjetivo, do real.
Máquina que silencia e esconde; omite e romantiza o podre; nos torna distantes e indiferentes e impede de saber o que se passa para lá das paredes, como se uma fronteira fosse capaz de decidir de quem é ou a quem pertence uma terra, como se a terra não fosse toda uma e de todos.
Máquina da obediência ao patrão, ao chefe de estado patriarcal e perverso que pune o libidinoso, o que se atreve a desamarrar o corpo seu e o dos outros; o libertino que bate o pé e que pouco dura até ser mandado para a tropa e andar ao mesmo ritmo dos outros, dos que marcham; que instaura a religião que engendra a culpa no inocente; que condena e ameaça; ali passa o pecador, o depravado; ali vai e com certeza ao vinho e ao sexo; vadio! Herege! Anda a ler à socapa Natália Correia, Carlos de Oliveira, Herberto Hélder e os restantes 897 nomes proibidos, o magano! Mandou blasfémias a Salazar e agora fodeu-se a valer; é a ruína; no mínimo apanha dez, com sorte seis, lá na cadeia para onde vão os que se prendem de empreitada; vá lá que aquilo até fica junto ao mar, sempre dá para um gajo se abstrair da sua condição de castrado e pensar – poder pensar!, que está num retiro, que está tudo preparado e organizado com vista à recuperação mental; há os que dizem que está tudo predestinado, vai na volta e está mesmo – oxalá os credos dos outros e os gritos das igrejas os salvem.
Abandonemos esta sala mental insuflada pela indignação e regressemos à nossa carruagem. As crianças não ficam convencidas, não entendem o porquê dos cravos:
-Como quando a avó nos manda arrumar o quarto e não nos apetece…
- Mas, e os cravos?
- Havia uma senhora chamada Celeste Caeiro, a quem um de nós pediu um cigarro. Celeste, como não fumava e tudo o que tinha eram cravos, ofereceu-lhe um. O soldado aceitou o cravo, colocou-o no cano da espingarda, e aqueles que o acompanhavam imitaram o gesto, levando Celeste a distribuir todos os cravos que tinha nos braços!
-Ainda bem que a Celeste não fumava…
Carnation, Lily, Lily, Rose, de John Singer Sargent (1885)
III – Espécie perene originária da região do Mediterrâneo
Impressiona a forma inofensiva com que as crianças fazem perguntas complexas ou as exclamam de forma tão breve e aparentemente inócua, e como nenhuma resposta é suficiente para lhes saciar as dúvidas que as invadem e vêm da mesma boca que ainda chucha o polegar; como cada resposta é moeda de troca para mais dez perguntas. Só o fazem porque nelas ainda habita a inocência, essa vertiginosa virtude tão transparente e perigosa porque reduz tudo a puro, a intrinsecamente bom; o cruel aqui não cabe, mas a noite, quando vem surda e forte, trás o revés da inocência, traz o apercebimento das torpezas do mundo e mata o corpo que essa inocência habita, a menos que esse se ponha em fuga; a menos que se pense duas vezes antes de escolher a roupa com que decidimos forrá-lo e com que decidimos vaguear as ruas; a menos que pensemos antes na eventual voz que bradará mais alto e dirá que nos havíamos colocado a jeito, como se a saia mais ou menos curta ou o decote mais ou menos aberto ou o batom mais ou menos encarnado fosse passaporte para a violação. De que serve semear e fazer crescer cravos entre muros? Quem os vê, os colhe? Quem garante que bradam, que são cravos-mundos e não cravos mudos que só são mudos porque os mandam calar? De quantos canteiros precisamos para plantar os cravos que nos faltam? De quantos precisamos por cada um que se arranca, se nos murcha por entre as mãos? Cada janela a mais que têm as crianças equivale a uma que não temos, e é por isso que elas veem os cravos que não vemos; que vivem em lugares povoados de uma liberdade estranha à avó e aos cegos a ela equiparáveis; oxalá venham elas a replantar no jardim dos cegos a liberdade roubada; a cultivar o jardim e a povoá-lo de direitos, justiça, respeito pelo corpo.
“Espécie perene originária da região do Mediterrâneo” - uma pesquisa breve sobre cravos leva-nos a esta definição consensual, e não deixa de ser irónico que a planta aqui símbolo de liberdade e democracia tenha uma conotação de perenidade; que essa conotação corresponda aliás ao estado do sistema sociopolítico a que a flor alude.
Salgueiro Maia continua a contar a História às crianças, às crianças-cravo-cultivado-por cultivar, e diz-lhes que batizaram com o seu nome ruas por toda a parte, Gaia, Lisboa, Lagos, Almancil, Pinhal Novo, Sesimbra, Quarteira, Ferragudo, e que essa maneira de honrar o deixa confuso. De onde vem esta atemporal vontade de dar às ruas nomes de gente? De elogiar os ilustres pelas ruas? Damos às ruas nomes dos que reivindicaram o livre, esquecendo aqueles que nas esquinas dessas mesmas ruas, quando diante de um corpo que julgam ser mais vulnerável que o seu, aniquilam; que coisa é esta da reparação histórica que nos faz condecorar os mortos; muito solene e institucionalmente falar em honra dos que já não estão, ao mesmo tempo que minga a proteção dos que ainda habitam a terra?
O comboio atravessa o país, hoje feito de cravos em alusão aos que reduziram as armas a plástico vã e evitaram o sangue, mas nestas cercanias e ruas por onde passa ainda sangue derrama, coalha e ferve - porque só alguns veem cravos, e muitos menos os cultivam.
Faro, última estação. Saímos todos, e engulo a vontade de seguir-lhes a voz um pouco mais. Como qualquer fantasma, Salgueiro Maia desaparece na escuridão que se estende para lá da cidade, sem dizer se volta. As crianças têm ambas os olhos fixos no preto constante do céu, e uma delas, apontando com o indicador que chucha para o nada que outrora era tudo para a anciã, pergunta, nessa habitual maneira branda de expor a dúvida:
- O deus a quem rezas por nós flutua lá em cima, vó?