Pinho Mateus: "Estamos a viver uma temporalidade diferente em todos os aspetos da nossa vida. Tudo é mais imediato, já ninguém espera."

Começou como “Festival Internacional de Cinema e Literatura de Olhão (FICLO)”, mas adota agora uma ligeira diferença na terminologia que o torna festival de todo o Algarve (FICLA). A terceira edição está prevista para a primavera de 2022 e vai decorrer em Faro. O mote é transversal às edições anteriores: explorar a multiplicidade de relações que se dão entre Cinema e Literatura, e que vão muito além das meras adaptações.
Conversámos com Débora Pinho Mateus, Diretora do Festival, a par de Candela Varas. Ao balanço destas duas edições de festival juntou-se o pensamento em torno de temas como a cultura do efémero e da liquidez, das suas implicações na relação com a Arte, em particular com a Literatura e com o Cinema.

Não se preocupe em parecer profissional. Seja você mesmo. Existem mais de 1,5 bilhões de sites, mas a sua história é o diferencial que separa você dos outros. Se você ler as palavras em voz alta e não se sentir identificado, isso significa que o texto ainda precisa ser trabalhado.

Seja claro, confiante e não pense demais. O melhor da sua história é que ela vai continuar evoluindo, e o site pode acompanhar essa evolução. Seu objetivo deve ser fazer com que ele seja ideal para este momento. Depois, ele vai se ajustando sozinho. Sempre é assim.

 
 

MIH – Como é que surgiu o FICLA?


Débora Pinho Mateus (DPM) – Este festival surgiu em 2019. É um festival que vem do cineclube de Tavira, entidade organizadora. Começou muito por esta ideia de aliar o Cinema à Literatura, não com a ideia da questão das adaptações. Existem alguns festivais de Cinema e Literatura com esta ênfase na questão das adaptações de obras literárias ao Cinema, mas nós, logo no início, quisemos ir além dessa relação. Já tivemos filmes que partem de adaptações, mas, no geral, são programações que pretendem olhar para outro tipo de relações que existem entre essas duas disciplinas. Por exemplo: O Campo, de Tiago Espanha, é um documentário ensaístico e no texto há referências a Alberto Caeiro, a Kafka, entre outros; ou There Was a Little Ship, de Marion Hänsel – um filme que é uma viagem poética; um exercício poético da memória, em que Marion vai da infância à idade adulta, falando dos vários acontecimentos da sua vida. No fundo, temos sempre esta ideia de mostrar outro tipo de relações que a literatura pode ter no cinema, ou vice-versa.


MIH - Relações que nem sempre são explícitas…


DPM – Sim, e que às vezes não são explícitas! Por exemplo, um caso muito interessante que foi a retrospetiva que fizemos da Kira Muratova, realizadora ucraniana maravilhosa, mas que é bastante desconhecida do público em geral, embora nos últimos anos tenham sido feitas algumas retrospetivas no Brasil e noutros países da Europa. Tem alguns filmes que são baseados em contos do Tchekhov, por exemplo, mas, o mais interessante no seu trabalho é a forma como diz que Tolstoi moldou a sua visão do mundo e que, portanto, está sempre presente nas obras que cria. Realmente, quem lê ou conhece Tolstoi consegue perceber que ele está nalgumas das suas obras.
Também a residência artística escrita foi uma das atividades do festival que começámos em 2020. No fundo, trazemos o guião de cinema para um olhar um pouco mais literário e não apenas técnico. Há guiões que são explicitamente técnicos, e que, portanto, têm um valor literário nulo, diria, mas, a par desses, há guiões que são verdadeiras obras literárias. Em Portugal, apesar de os filmes portugueses até serem até bastante literários, pelo menos na tradição, não há muito esta iniciativa de se publicarem guiões, ao passo que noutros países europeus há um incentivo nesse aspeto. Então, este foi um festival que surgiu com esta prerrogativa inicial: trazer o Cinema e a Literatura nas suas múltiplas influências, ou nas suas múltiplas contradições, e sempre numa relação que vai além do óbvio. De como elas se ligam, porque, se pensarmos, a literatura liga-se a tudo.

MIH – O antigo FICLO sofreu uma alteração de vogal que o converteu em Festival de todo o Algarve (FICLA). Porquê esta alteração?


DPM – Muita gente nos dizia logo no início que devia haver a referência à região do Algarve. Na altura, estávamos em Olhão e achávamos que essa cidade devia constar no nome. Agora, com esta mudança para Faro, fez-nos todo o sentido esta “mudança de género”, brincamos nós. Não só porque Faro é a capital do distrito, mas porque para nós faz sentido que tenha ali Algarve: em primeiro lugar, é um festival para a região. Já tem o seu impacto nacional e internacional, mas voltamos mais uma vez à ideia de que já falámos: é sempre preciso que a comunidade da região acarinhe este projeto. Então, achámos que agora sim Algarve teria de estar no nome.


MIH – A Segunda Edição do FICLA decorreu em tempo de pandemia. Que dificuldades existiram na programação e montagem do festival, perante essa conjuntura?


DPM – Sobretudo com um festival que acabou de nascer, acho que se torna bem mais difícil porque temos uma estrutura ainda muito pequena, no sentido de que os recursos são parcos. Foi um desafio muito grande, porque o confinamento deu-se a dias de o festival começar. Mas, algo engraçado para que outros festivais amigos, digamos, nos chamaram a atenção, é que fomos o primeiro festival a ter lugar no pós-confinamento. Isto pode não significar nada, mas o facto de termos inaugurado, pelo menos em termos europeus, um festival assim, dá-nos uma certa alegria. Forçosamente fizemos adaptações, como ao nível da programação. Por exemplo: tínhamos um Ciclo do Gótico Tropical, mas, apesar de ser um ciclo excelente, achámos que, pelos temas e referências a catástrofes naturais, humanas e sobre-humanas e a mortes, não era o momento certo para o ter.
Uma coisa boa: por termos sido obrigados a reagendar o festival, ele acabou por acontecer em julho, com um tempo maravilhoso. Então, pensámos em aproveitá-lo e fazer o máximo de eventos ao ar livre. Muitos dos filmes foram transmitidos ao ar livre, e notámos uma diferença grande: estes eventos ao ar livre estavam cheios e os eventos em sala foram mais difíceis. O facto de termos conseguido realizar muita coisa ao ar livre ajudou-nos bastante, e subimos até ligeiramente o número de pessoas que compõem o público. As pessoas sentiam-se mais à vontade ao ir e estar. Até porque as pessoas estavam um pouco sedentas de tudo. Nem que fosse de ver outras pessoas. Portanto, para aquilo que se estava à espera, foi bastante bom e ficámos bastante felizes com o desenrolar possível do festival.

 
Queremos colocar a livraria num sítio inusitado para a alargarmos ao público em geral – às pessoas que não procuram livrarias
 

MIH – Há um excerto que vem na vossa nota de imprensa e no qual se diz que, nesta terceira edição, “têm como missão abordar os temas mais prementes de reflexão.” Que temas são esses? E, cruzando com o cartaz, podes avançar alguma da programação, ciclos ou realizadores com que possamos contar, e que sirvam de base à reflexão desses temas?


DPM – Ainda não podemos avançar nada sobre o cartaz, porque… como este ano foi mesmo muito complicado, mas sobrevivemos e acho que estamos mais vivos que nunca, nós, apesar de já termos a programação toda desenvolvida na nossa cabeça e nos nossos apontamentos, ainda não temos as coisas fechadas com os artistas, distribuidoras, entre outros. Não queremos avançar nada para depois não cairmos numa situação em que não pôde acontecer. No entanto, uma coisa que durante este ano começámos a debater entre nós foi este nosso olhar de não querer ter a Literatura simplesmente como um apêndice do Cinema. Já tínhamos várias atividades montadas neste sentido, por exemplo: temos sempre uma livraria com um catálogo próprio, cujos livros são desenvolvidos por nós e outros colaboradores. Até agora, aconteceu no Mercado da Fruta. Portanto, também queremos colocar a livraria num sítio inusitado para a alargarmos ao público em geral – às pessoas que não procuram livrarias. Até porque no Algarve é difícil – elas praticamente não existem. Na segunda edição, trouxemos um Ciclo de Cinema Italiano, e já tínhamos ali uma questão que era muito forte na literatura do século XX: a desagregação da consciência, de como ela na escrita também funciona e como é que esse tema entrava nos filmes, ou seja, como é que realizadores começaram a utilizar um mecanismo da literatura para fazer os filmes. Por exemplo, Pasolini, que fazia parte desse ciclo, dizia: “Para mim, escrever e filmar é exatamente a mesma coisa, e o que eu faço é cine-romances”. Isto é muito bonito: ver como é que esta ligação entre as duas práticas artísticas vai muito além desta relação inicial que vemos na questão das adaptações.

Começámos a pensar: “Sendo este um festival de Cinema, pelo que o Cinema tem naturalmente de ser sempre uma parte estrutural do festival, como é que podemos trazer a Literatura com a sua própria voz? E então é este o mote: arranjarmos questões que nos preocupam a nós ou que são muito prementes na sociedade contemporânea, e depois abordá-las a partir de cada disciplina, e da forma única que cada disciplina pode refletir os temas. Por isso é que para nós foi muito importante não esperar para o ano, e termos já este ano feito um pequeno apontamento, um aperitivo ou uma janela por onde espreitar aquilo que o público pode depois ir ver. O que fizemos foi basicamente isto: a partir do tema do corpo e do desejo da mulher, explorar como é que eles são tratados no cinema e na literatura. Tivemos Destello Bravío, a primeira longa-metragem de Ainhoa Rodríguez. Acho que é um filme que todos deveríamos ver porque toca os temas do desejo, o corpo, a sexualidade, não só nas mulheres, mas nas mulheres daquela idade, dentro de um sistema patriarcal fortíssimo, numa vila que está completamente despovoada e onde só vivem pessoas mais velhas, praticamente. Aliás, algo muito interessante no filme é o facto de não aparecer nenhuma criança. O filme fala sobre isso: é uma mulher que está a falar sobre o corpo, a sexualidade e o desejo das mulheres.
Depois, temos a conferência-performance de Sónia Batista, coreógrafa e escritora. É muito interessante porque é o corpo dela que está ali, é a voz dela que está ali. Portanto, é algo muito íntimo ao mesmo tempo, porque ela está a falar dela, mas, no fundo, está a falar de todas nós, mulheres. É muito interessante vermos como é que a partir de perspetivas tão diferentes e de práticas artísticas também elas diferentes, se toca o mesmo tema e se promove uma discussão tão interessante. Aliás, promovemo-la também com a moderação e incitação da professora Ana Isabel Soares. E foi muito interessante ver como é que as obras se tocavam não só a partir do tema, como a partir de perspetivas, mas como os resultados são tão diferentes e como também nos chega de forma diferente o estarmos a ver uma performance ou o filme. E isto é, digamos, uma nova metodologia ou novo olhar que queremos que o festival tenha. Porque é uma forma de podermos ver o que de único cada uma destas Artes nos pode trazer sobre o mesmo tema. Isso que não tem de ser o festival todo sobre o mesmo todo. Pode ser, ou pode ser só um ciclo….enfim! Mas, temos já esta atenção de que queremos trazer ambas Artes com a sua própria voz e com os seus próprios olhares. Aquilo que as une, e também aquilo que as diferencia.

 
[a Cultura] deve chegar a todos para que todos tenham as mesmas oportunidades de se poderem interessar – simplesmente como público ou tornando-se artistas eles próprios. [...] ​as Câmaras têm mesmo que se debater e não podem ficar só pelo que é comercial ou só popular… aliás, temos de popularizar a Arte
 

MIH – Quando falaste dessa livraria que colocaram no Mercado, lembraste-me de uma mulher que, há tempos, ficou indignada com a presença de alguém que estava de chinelos, na sala de cinema. Chegou a sugerir que o Cinema passasse a fazer uma espécie de curadoria do público, de maneira a triar quem entra. Acabam por ser quase antagónicos, o que há de implícito nesse levar das livrarias para junto da comunidade, por oposição à quase segregação que se faz do público. Como lês este pensamento?


DP – Tem todo o sentido estarmos a falar sobre isto, sobretudo quando estamos num país super centralizado. Acho que não estarei muito longe da verdade quando digo que, sem ser o Luxemburgo, devemos ser o país mais centralizado da Europa. Serviço público na Cultura existe em Lisboa e no Porto. Aqui, no Algarve, o serviço público que temos em relação ao Cinema partem dos Cineclube de Tavira e Faro. De resto, os outros cinemas passam cinema comercial. A Cultura deve ser para todos, e, depois, há uma escolha individual, em que as pessoas quererem ou não. Mas, deve chegar a todos para que todos tenham as mesmas oportunidades de se poderem interessar – simplesmente como público ou tornando-se artistas eles próprios. Por essa razão, parece-me fundamental que o FICLA consiga sobreviver, tal como outras atividades culturais que existem aqui no Algarve. As Câmaras Municipais têm um papel fundamental de proporcionar serviço público de qualidade aos seus concidadãos. Porque, de outra forma, não o conseguimos, por agora. Teremos que lutar por uma certa descentralização. Aliás, a própria Ministra da Coesão do Território, Ana Abrunhosa, disse há dias que este país e este governo eram dos mais centralizados da História. Não é uma coisa nova: já no século XIX havia escritores e políticos a falar disto. Portanto, as Câmaras têm mesmo que se debater e não podem ficar só pelo que é comercial ou só popular… aliás, temos de popularizar a Arte: a Arte com letra grande, letra pequena, letra torta, letra oblíqua! Temos que trazê-la. Tentámos fazê-lo não só através da livraria no Mercado, mas também com performances que aconteceram pela cidade. Numa dessas performances, aconteceu algo lindíssimo: estávamos na rua, um ator estava num canto e outro ator noutro canto, e, entretanto, reparamos que estava um senhor sentado à porta de casa. A dado momento, perguntou: “o que é que estão a fazer?” Responderam que era uma performance, que “estão aqui uns atores a dizer uns poemas”. O senhor respondeu: “ai estão a falar de poesia? Então eu agora vou-vos dizer umas…” e pronto, começou ele a dizer poesia e, às tantas, os atores vieram ter connosco, as outras pessoas viraram-se para ele e ficaram todos a ouvir o senhor a dizer quadras. Então, como é que nos podem dizer que as pessoas não têm sensibilidade? Há artes que são mais difíceis. Se eu nunca ouvi ópera, talvez não vá gostar de ouvir à primeira. Mas, se ouvir uma segunda, terceira ou quarta, e alguém me for explicando uma coisa ou outra, se calhar até começo a gostar muito de ópera.

É claro que trazemos alguns filmes que não são fáceis de ver, se comparados à tradição de filmes de Hollywood – que são filmes feitos exatamente para provocar no espectador o não questionamento. Tem de ser tudo mastigado. O espectador não pode ficar com perguntas. Tem de ter imediatamente as respostas. Quando trazemos Kira Muratova ou Alberto Serra, é claro que isso não acontece porque eles querem exatamente fazer um outro tipo de cinema. Nem todas as pessoas têm de gostar! E o não gostar não quer dizer que sejam nem mais nem menos. Mas, se nunca tiverem a hipótese de contacto, se não lhes for dado a conhecer, como sabê-lo? Aliás, porque não ir ao cinema de chinelos? Não vejo problema nenhum nisso. Não me parece que isso influía em nada no que aquela pessoa possa produzir de pensamento, ou na experiência que ela possa ter a ver uma obra de Arte.

Nem todos temos de entender as mesmas coisas de uma mesma obra. Cada um entende aquilo que entende e está ótimo, assim! O bom de ver filmes em sala é isso mesmo: o facto de, no pós-filme, podermos falar sobre o que acabámos de ver. É aí que a nossa perspetiva do filme se abre a outras perspetivas. É aí que crescemos juntos. E daí esta sensação de comunidade que o Cinema nos dá em sala, e que eu acho maravilhosa. É fantástico o facto de podermos estar a partilhar com pessoas que são muito diferentes de nós. Por exemplo: temos cá comunidades piscatórias muito fortes. Eu posso ir ver um filme e ao meu lado estar um pescador. Ele vai ver coisas que eu certamente não vou ver. E isso é maravilhoso! Não temos todos de ter lido muito ou sermos ávidos pelo cinema para acharmos que temos mais a dizer que outras pessoas. Não! Todos temos coisas a dizer porque todos vimos de maneira diferente. É por isso que algo que temos vindo a trabalhar e pretendemos continuar a apostar é esta nossa ligação à comunidade. Porque, mesmo que este festival possa ter uma projeção nacional e internacional fantástica, tem de ter uma ligação à comunidade local onde existe; achamos importantíssimo que seja acarinhado pela comunidade onde existe. Portanto, trouxeste um tema importante de se falar porque, aliás, há tempos alguém dizia “este festival não é para mim”. E nós respondemos: este festival é para todos! É claro que uma pessoa que lê muito vai ver coisas que uma pessoa que lê pouco não vê, mas essa pessoa que lê pouco talvez seja uma pessoa que se dedica a qualquer coisa que traz uma nova visão.

Devíamos todos perder certos medos. Acho que há muitos medos de fazer perguntas. Aliás, por vezes, quando fazemos uma pergunta começamos com “bem, não sei se esta pergunta é completamente descabida…” e isso demonstra ainda um certo receio de arriscar. Por outro lado, também é preciso lutar contra os nossos próprios preconceitos. Lá está: vemos uma pessoa de chinelos no cinema, e achamos logo que essa pessoa não pertence ali, que não devia ali estar ou que teria de mudar para ali estar. Se calhar, essa pessoa sabe muito mais de Cinema do que a senhora que faz o comentário…

 
Estamos a sofrer uma grande transformação na forma como vivemos o tempo [...] tudo é mais imediato, já ninguém espera. Onde está essa coisa de parar na rua e contemplar algo?
 

MIH – Vivemos num tempo de abundância, do efémero…as variadas plataformas de Streaming ou, no caso da literatura, as aplicações como a Goodreads, que nos permitem criar listas infinitas de filmes que queremos ver e de livros que queremos ler, são materializações disso. Como se o número de filmes ou livros assistidos ou lidos fosse mais superlativo que o momento em que se assiste ou lê. De forma indissociável, há a questão da hipervigilância, expressa na possibilidade que essas plataformas te dão de ver os filmes e os livros que os outros veem ou leem.
Que efeitos traz esta cultura dos números à nossa relação com o Cinema e com a Literatura? Como é que olhas ou te posicionas diante disto?


DPM – Em termos mais gerais, acho que estamos a sofrer uma grande transformação na forma como vivemos o tempo, o que alimenta as formatações. Por exemplo: uma Longa-metragem tem a duração de 60 minutos. Mas, há filmes com quatro horas? E as pessoas questionam-se… “como assim, quatro horas!?” Estamos a viver uma temporalidade diferente em todos os aspetos da nossa vida. Tudo é mais imediato, já ninguém espera. Onde está essa coisa de parar na rua e contemplar algo, ou estar à espera de alguém e estar simplesmente a contemplar? Já há pouca contemplação porque já temos demasiadas coisas a que podemos recorrer para não ter de contemplar. Depois, vem a questão do aborrecimento: já ninguém se aborrece, hoje. Ou, se estou aborrecido, vou às minhas apps. É esta coisa de acharmos que hoje há tanta coisa que nunca vamos poder ver tudo e ler tudo…

 
A contemplação não é só estar a olhar para uma paisagem ou estar a olhar para o nada. A contemplação também é isto: acabares de ver, ler ou experimentar uma coisa, teres este momento de absorver essa coisa. De sentires o gostinho, e depois partilhares com outros.
 

Além disso, ver um filme em sala é muito diferente de o ver em casa. A começar pela questão do ecrã: é muito diferente estarmos a ver um filme em ecrã grande ou em ecrã pequeno. Por exemplo, este filme que mostrámos agora, o Destello Bravío, de Ainhoa Rodriguéz, é um filme que, para mim, em certos momentos, há planos que parecem mesmo quadros. Quadros em todos os sentidos: pela temporalidade que a realizadora dá aos próprios planos, e também porque temos esta tendência em ir aos pormenores, aos detalhes, e depois voltar atrás para voltar a ver a coisa. É uma sensação incrível, a de estar a ver aqueles planos, tanto os da natureza como interiores de casa. O filme é mesmo muito bom! Mas, isto num ecrã pequeno é impossível. Estamos demasiado próximos para que possamos ver certos detalhes. Os filmes são feitos precisamente com a intenção do grande ecrã. O realizador tem essa noção. Quando passas a um ecrã tão pequeno, perdem-se muitas coisas. Além de não haver esta questão do escuro, da impossibilidade de pausar. Em casa, colocamos o filme, vemos um bocadinho, metemos pausa, vamos fazer isto e aquilo e, às tantas, acabamos por deixar o filme por terminar durante uma semana. Acontece também por essa questão das listas intermináveis: podes abrir 10 filmes não ver nenhum, mas, se alguém te perguntar se viste, tu respondes que sim. A contemplação não é só estar a olhar para uma paisagem ou estar a olhar para o nada. A contemplação também é isto: acabares de ver, ler ou experimentar uma coisa, teres este momento de absorver essa coisa. De sentires o gostinho, e depois partilhares com outros. Dá-me ideia de que esta temporalidade que vivemos hoje em dia do imediato, do efémero, é um bocado como o por-do-sol que se dá muito rápido nalguns países perto da linha do Equador. Aqui temos um por de sol que vai acontecendo, mas, nesses países, aquilo é mesmo abrupto! Uma pessoa olha e é dia, olha de novo e é já noite. Acho que, hoje, estamos um bocado assim: olhamos para aqui, mas, de repente, já estamos a olhar para outra coisa. Não há tempo de as pessoas estarem consigo próprias nas obras que estão a ver. Faz-me confusão, essa coisa tão rápida que quase não se consegue agarrar. Tocar. Acho que esta temporalidade ultrarrápida vai provocar certos danos, mesmo ao nível da convivência, na forma como estamos com os outros. É algo sobre o qual temos de refletir.

Por fim, referir que, se não fossem os apoios e parcerias, poderíamos não ter continuado, ou, a continuar, poderia ter sido de forma mais frouxa, mas estamos com bastante força e vitalidade, e isso também se deve aos apoios e parcerias que conseguimos desenvolver. Por isso, é mesmo importante que façamos estes agradecimentos, porque têm mesmo de ser feitos, agora com ainda mais pompa porque foi um ano mesmo muito duro para o festival. Em primeiro lugar, à Câmara Municipal de Faro, sobretudo ao Vice-Presidente Dr. Paulo Santos e ao Vereador da Cultura Bruno Inácio; à Direção Regional de Cultura do Algarve, identidade que acompanha o festival desde o início e que sempre acarinhou muito o projeto, nomeadamente à Diretora, Dra. Adriana Nogueira, e também a Anabela Afonso; ao Cineclube de Faro, porque, sendo isto um festival organizado pelo Cineclube de Tavira, ficamos muito felizes por podermos estar a formar uma parceria verdadeiramente forte com o de Faro; ao Garantir Cultura, sem o qual não estaríamos aqui, este ano. É um apoio tão efémero quanto a nossa temporalidade, o que significa que não se volta a repetir; ao ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual; à Universidade do Algarve e ao CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação, também nossos parceiros desde o início e que respondem sempre e com grande entusiasmo às nossas ideias, propostas e provocações; à Associação ArQuente, ao IPDJ e ao Clube Farense, os nossos mais recentes parceiros, que foram verdadeiramente espetaculares em todos os sentidos e que, portanto, são parcerias que também queremos manter, ao mesmo tempo que também queremos chegar a mais parcerias.


FONTE Make It Happen FOTOGRAFIA FICLA
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