Catarina Saraiva: "Ser artista hoje em dia é, já por si, uma prova de resistência muito grande”
Do Festival Verão Azul ao diálogo entre Arte e Política;
entre Arte, Resistência e Protesto – uma tríade que a Pandemia veio instigar na comunidade de profissionais da Cultura:
entrevista a Catarina Saraiva, curadora do Verão Azul
Começou no dia quatro de novembro a 10ª edição do Festival Verão Azul, que se estende até dia 20 pelas cidades de Lagos, Loulé e Faro.
Foi da força do desejo de trazer Arte Contemporânea a Lagos que, em 2011, por impulso de Ana Borralho e João Galante, nasceu o Verão Azul, Festival que conta com a produção da Associação Cultural Casa Branca. Desde então, a multidisciplinaridade é trave-mestra na programação. Volvidos 10 anos, o princípio volta agora a imperar, numa edição que agrega 29 propostas artísticas que incluem dança, música, teatro, fotografia, cinema, artes visuais e performativas. O programa completo encontra-se disponível, aqui.
Em conversa com a Make It Happen, a curadora do Verão Azul, Catarina Saraiva, fala-nos sobre a sua evolução, sobre o diálogo entre Arte, Direitos Humanos, Democracia e outros propósitos que movem o Festival, mas também sobre possíveis leituras a fazer da relação entre Arte, Resistência e Protesto – uma tríade que a Pandemia veio instigar no seio da comunidade de profissionais da Cultura.
Ana Rodrigues (AR) – O que é que, em 2011, proporcionou a concretização deste Festival?
Catarina Saraiva (CS) – O Verão Azul foi criado por Ana Borralho e João Galante – atualmente diretores artísticos. A ideia da Ana era precisamente mostrar em Lagos aquilo que ela nunca conseguiu ver enquanto crescia: uma Arte mais experimental, com um discurso crítico e provocador.
Quando eu entrei, em 2017, fizeram-me o convite para fazer a Curadoria e para que pensasse num ritmo bienal – o qual, para mim, é o melhor ritmo, porque dá para refletir, para repousar, para olhar com mais atenção, para se ser mais cuidado. A única alteração desde 2011 até agora é precisamente essa diminuição do ritmo, mas continuámos sempre a trabalhar com linguagens experimentais em todas as áreas artísticas – não só performativas, mas também visuais e no cinema.
Apesar de o Festival ter nascido em Lagos, houve sempre essa vontade de ir para outras cidades do Algarve. Fez-se uma experiência com Portimão, e, entretanto, encontrámos estes parceiros em Faro e em Loulé, que nos acompanham ao longo destes quatro anos.
AR – Que critérios têm em conta no momento de escolher os artistas? Como é que se dá esse diálogo?
CS – O Verão Azul sempre quis ser um festival internacional. Este ano, optámos precisamente por não ter mais artistas internacionais e por fazer uma programação onde houvesse espaço para a criação nacional. Temos só um grupo internacional, que na verdade é um coletivo que nós chamámos no ano passado para fazer residência connosco.
Para a seleção dos artistas, o que nós pensamos sempre é: “o que é que está a acontecer no mundo, o que é que é importante para este território?”; “o que é que, da nossa perspetiva, este território precisa de enfrentar?” ou “quais são as questões que são importantes colocar em evidência?” A partir daí, tudo passa por se estar muito atento àquilo que se faz a nível nacional e internacional, e ir percebendo quais são os artistas que, naquele momento, estão a fazer obras que nós consideramos que são importantes mostrar naquele território. Há artistas que nós seguimos há muito tempo, até que chega a altura em que entendemos ter chegado a hora de os convidar. A ideia é esta: sensibilidade, assumir a subjetividade e pensar o território, acima de tudo.
Por vezes é difícil, porque podem haver 1500 obras interessantes, mas nem o nosso orçamento permite, nem temos público ainda suficiente para fazer muita programação. Porque este festival é um festival também de formação de públicos – nós estamos constantemente a formar públicos.
O Verão Azul costuma ser um misto de programação e criação. Este ano, decidimos apoiar mais os artistas que tínhamos começado a apoiar no ano passado, e então a programação foi muito mais dedicada à criação – e, nesse sentido, muito mais de risco, por não sabermos o que é que vai acontecer. Da nossa programação, só três ou quatro peças já estrearam noutro lugar, isto é, quando assumimos esta programação, já as conhecíamos e já sabíamos o que eram. Tudo o resto é um risco porque dissemos: “acreditamos neste artistas, vamos apoiá-los, e temos o compromisso de que os queremos apresentar no festival.” Não é por serem artistas melhores ou piores, mas sim com os quais temos uma relação e um diálogo importantes, e que talvez tenham tido a sorte de estar connosco na altura da Pandemia e de termos tomado essa atitude de os acolher e apoiar.
AR – Que preocupações temáticas subjazem ao Festival?
CS – Logo quando entrei, propus à Ana Borralho e ao João Galante (diretores artísticos do Festival) que tomássemos um rumo ou um tema como possibilidade de discussão de questões sociais – o que sempre foi uma preocupação do Verão Azul. A minha proposta foi que falássemos sobre o Antropoceno, porque pareceu-me que, aqui no Algarve, fosse muito importante falar-se sobre de que forma tem a ação humana transformado e criado uma série de desigualdades entre os territórios – não só desde um ponto de vista ambiental, mas também sociológico e económico. Além disso, desde o princípio que o Verão Azul assume uma atitude não paternalista, isto é, de pensar que não há públicos para linguagens experimentais, que são ininteligíveis – nunca a teve o Verão Azul e eu também não tenho essa perspetiva e, portanto, foi uma boa conjugação de valores. Então, pus em cima de mesa esta questão: vamos falar do Antropoceno, não só desde a questão da origem da palavra, que surge como conceito geológico, mas também pensando de uma forma mais abrangente: o que é que o Antropoceno provoca na nossa sociedade? Esta questão tem-nos acompanhado evolutivamente: na primeira edição em que estive, em 2019, havia já muita presença de peças que falavam sobre problemáticas em torno do ambiente. Além dessa, abordamos outras questões, como seja a Democracia, as desigualdades, a Humanidade – onde é que ela anda (?).
AR – O Festival abriu no dia 4 de novembro, com "Faro Oeste", uma exposição fotográfica de Pauliana Valente Pimentel, que nos traz um retrato das comunidades Ciganas que vivem no Algarve. Que importância tem para vocês este elo entre a Arte e os Direitos Humanos, e de que forma é que este pendor político ou, talvez possamos dizer… ativista (?) está presente nas propostas artísticas desta edição?
CS – A Pauliana foi uma das artistas que convidámos a estar em residência e a fazer uma nova criação para o festival. Estamos a falar de um pensamento sobre programação bienal: o Verão Azul pensa em biénios numa perspetiva de, no ano em que não há Festival, levarmos artistas ao território algarvio, para que desenvolvam as suas criações em ligação com o território. Para que depois essas peças possam ser apresentadas no ano seguinte, isto é: para que essas peças amadureçam, evoluam, e estreiem no Festival.
No caso da Pauliana, nós queríamos muito trabalhar esta relação de vizinhança entre Faro e Loulé: são duas cidades vizinhas, mas que parecem estar de costas uma para a outra. Queríamos trabalhar aquilo que são os ‘territórios entre’. O que é que está nos ‘territórios entre’? Nos ‘territórios entre’, temos uma comunidade Cigana que não quer ser integrada por nenhuma destas duas cidades – o que é visto como um problema, e não como uma tentativa de pensamento sobre o que são as culturas diferentes da nossa, mais hegemónica.
A Pauliana Pimentel tinha já começado a fazer um trabalho fotográfico com as comunidades Ciganas de Castro Marim, e pareceu-nos óbvio que ela deveria ser a pessoa a trabalhar estas Comunidades, dando assim continuidade ao seu trabalho. Além de ela ter este interesse, também é uma artista que nos interessa muito, pela forma muito afetuosa e envolvida que faz os seus trabalhos. É uma pessoa que trabalha através da Fotografia uma série de questões importantes. E aí está ela, nas Antigas Carpintarias do Museu Municipal de Faro, uma exposição lindíssima onde a Pauliana nos leva àquilo que são os acampamentos das comunidades Ciganas que vivem entre Loulé e Faro, e que expõe de uma forma também muito afetuosa estes preconceitos que nós temos e que não deveríamos ter para com uma comunidade que é minoritária. Hoje, falamos tanto sobre esta necessidade de integração de comunidades minoritárias, mas esta é uma que se esquece constantemente. Essa é uma preocupação do Verão Azul – de através da Arte poder chamar ou visibilizar algumas coisas que são realmente importantes na nossa sociedade.
AR – Em que medida podemos falar de Arte e Política? Será que a Arte implica a Política, ou tem implicações na Política? Como é que se posiciona diante deste binómio?
CS – De uma perspetiva muito pessoal, acho que todos nós somos animais políticos desde o momento em que tomamos uma posição: essa posição tem sempre um efeito político, porque se trata de uma ação ou reação àquilo que é o nosso meio envolvente. Mesmo quando dizemos que não tomamos uma posição – esta já é uma posição. A Arte, em si mesma, não tem que dizer nada a ninguém. Não tem de ser política no sentido de ser panfletária. A Arte, já por si, é uma atitude política. Acho que se viu muito bem nestes dois anos de Pandemia como, no meio artístico, se notou muito a comunidade de profissionais que sempre conseguiu viver na maior precariedade e com uma postura de resistência, e que foi bastante a baixo durante a pandemia, mas que também demonstrou essa postura e capacidade de passar por cima de todas essas problemáticas. Não é por acaso que surgiu no meio profissional uma série de sistemas de apoio e de solidariedade para com a classe, e não é por acaso que surge, cada vez mais, esta atitude por parte dos artistas de falar sobre questões que são importantes.
A Arte pode ser só falar de Estética – o que, para mim, já é uma atitude política, porque já ninguém fala da Estética, já ninguém fala da beleza, já ninguém fala do ócio, coisas que são vistas como não produtivas. Uma obra artística pode permanecer igual a si mesma durante séculos e séculos – não vai evoluindo. Uma obra de Mozart continua a ser uma obra de Mozart, e pode ser atemporal. E não produz mais nada do que isso. Mas há uma coisa extremamente importante: alimentar o espírito, coisa da qual as pessoas cada vez mais se esquecem. Eu espero que tenham percebido durante a Pandemia como tanta gente ficou deprimida e com tanta ansiedade. Não será preciso Arte? Seria muito pior sem Ela.
AR – No entender da Catarina, a Arte aproxima-se mais de uma forma de protesto, ou de resistência?
CS – Acho que não podemos esperar que todos os artistas tenham uma atitude de protesto. Ser artista hoje em dia é, já por si, uma prova de resistência muito grande. Eu acho que a Arte não é um protesto. A Arte é uma forma de expressão, é uma forma de comunicarmos com o outro, é uma forma de querermos provocar um encontro. Isso é das coisas mais bonitas que há na Arte – e da qual nos esquecemos muito. Porque a Pandemia também nos colocou nesse lugar. Felizmente, muita gente percebeu que estar sozinho e enclausurado não é a melhor coisa para a Humanidade – somos seres gregários e isso é muito importante para a nossa sanidade mental. A Arte tem essa capacidade de provocar encontro. Encontro entre quem está a fazer e quem está a ver; entre aqueles que tiveram a oportunidade de poder estar, olhar e comunicar tudo aquilo que uma obra de arte quer comunicar. Porque, para mim, a Arte é uma forma de comunicar – seja através do protesto, da poesia, da beleza. A Arte são aquelas peças que, de alguma forma, nos fazem sentir algo e pensar algo. Tem que ter sempre estas duas componentes: a Arte não pode fazer só pensar sem fazer sentir – tem que ressoar. E, quando faz ressoar, faz provocar essa vontade de a discutir. À medida que caminhamos para os países do Sul, vamo-nos apercebendo disso, que a Arte é uma forma de resistência muito grande.
AR – A nível de públicos, que conteúdos encontramos na programação dirigidos a públicos específicos, como o infantojuvenil?
CS – A decisão de tornar o Festival bienal é precisamente fazer com que o público se possa ir interessando por aquilo que são processos de trabalho, que os integre, e que depois fique curioso para os ver como produto final. Em Lagos, fizemos precisamente uma programação muito mais infantojuvenil, porque é lá que se desenvolve o projeto Gymnasium, que leva a Arte para as escolas, desenvolvido pela Casa Branca. Além disso, temos a preocupação de encontrar projetos que possam ir buscar públicos mais irreverentes, como o adolescente, que acha que nunca tem de ir ao Teatro, e que é tudo uma chatice. Tentamos, por isso, trazer coisas interessantes e fazê-los participar. O festival é para um público generalista – o que nós queremos é que toda a gente venha. Por isso, trazemos também espetáculos para que os pais tragam os filhos, ou os filhos levem os pais. Depois, há outros que se destinam aos adultos, por serem mais pesados – pela duração, e no sentido em que levam a um pensamento e a uma intimidade que talvez as crianças não aguentam.
AR – A descentralização da Cultura das metrópoles e a criação de novas âncoras artísticas no país é uma preocupação vossa?
CS – Completamente. Aliás, daí a vontade de prosseguir com esta 10ª edição. A Casa Branca é uma estrutura que está sediada em Lagos por uma questão de definição de território: é este o nosso território. Além de acolher o projeto de levar a Arte para as escolas de Lagos, acolhe também as criações de Ana Borralho, de João Galante e de Mónica Samões, que são internacionais e que andam por todo o lado. Desde o princípio que há essa ideia de que é necessário sair dos grandes centros urbanos. Eu não gosto muito da ideia de periferias, porque acho que os nossos tempos mudam consoante o lugar onde vivemos, mas, quando saímos dos grandes centros urbanos, percebemos que há muito menos gente. Portanto, é mais difícil encontrar esse público, que em Lisboa é muito fácil de encontrar para as artes performativas ou para as artes mais experimentais, onde o próprio público já se habituou à ideia de que existe muita coisa. Quando sais das grandes cidades, como não existe uma programação muito constante, às vezes é mais difícil essa formação de públicos. A Ana Borralho cresceu precisamente com essa ideia de querer mostrar na cidade de Lagos aquilo que nunca teve possibilidade de ver enquanto crescia. Porque realmente existe público para isso! Então, esta é uma das batalhas da Casa Branca que criou, com esse sentido, o Verão Azul e o projeto Gymnasium. Acho que é uma preocupação que devemos ter. Em Lisboa e no Porto acontece muita coisa, e as pessoas não têm noção de que no resto do país há uma pobreza muito grande de coisas ‘fora da caixa’. É muito fácil encontrar espetáculos mainstream, coisas que o público vai ver porque vem o ator de telenovela, ou cantor pimba. Quando se fala sobre este tipo de arte, mais crítica e que utiliza dispositivos menos convencionais, existe público – é preciso é que as pessoas assumam ou consigam quebrar aquela barreira de que não vão entender nada, porque na realidade as pessoas quando vão ver ficam encantadas e há sempre uma primeira vez que é sempre mais difícil. Também depende muito da ajuda da divulgação por parte das próprias políticas locais, porque, por vezes, há muita coisa que acontece, mas o poder local, que deveria apoiar estas iniciativas, não as entende como forma daquilo que é a diversidade de um território, e nós, enquanto estruturas independentes, não temos uma capacidade de comunicação tão grande como têm as grandes instituições – e isso é também o que faz com que as pessoas não percebam que se estão a passar muitas coisas. E por isso é que é preciso estas conversas e passar a mensagem de que é divertido ir ao Teatro!
FONTE Make It Happen FOTOGRAFIA Pauliana Pimentel