Daniel Matos: “O meu trabalho não é a procura de uma narrativa, mas de uma experiência do corpo com a realidade”

Estou à procura de um laboratório daqueles muito brancos e frios e azuis, parecidos a um talho no momento em que se acendem as luzes da cozinha, onde possamos pendurar a pele. Um sítio onde nos beijemos e toquemos violino juntos, dentro de carcaças, descalços, a vindimar o fígado... Onde passe um techno cool a meio de uma música coral ortodoxa e muitas flores, muitas flores azuis, para ser bonito e para podermos ser felizes.”

Daniel Matos

VÄRA estreia amanhã, dia 22 de janeiro, pelas 21h30, no Auditório Duval Pestana do Centro Cultural de Lagos.

Da urgência do encontro entre corpos; da procura pela tentativa de diálogo através da repetição, "acumulando erros e ampliando o confronto com a realidade de cada um", assim nasce VÄRA, objeto coreográfico assinado por Daniel Matos e interpretado por Adriana Xavier, Sofia Kafol, Joana Pinto, Jean-loup Gayrard, Lia Vohlgemuth, Mélanie Ferreira e Marco Olival. O projeto foi financiado pela DGArtes e desenvolvido com a produção da CAMA - Associação Cultural.

Sobre o que move a CAMA, o projeto VÄRA e o estado da programação e do financiamento da Cultura em Portugal, conversámos com Daniel Matos – momento que abaixo se transpõe.

AR (Ana Rodrigues) – Como é que surgiu a CAMA?
DM (Daniel Matos) – Cofundei a CAMA com a Joana Flor Duarte. Eu fui estudar para Lisboa em 2014, mas já estava a desenvolver alguns projetos meus cá, no Algarve, e a ideia era continuar a fazê-lo. Também a Joana queria desenvolver projetos seus. Na altura, estávamos a trabalhar com outra estrutura, o Teatro Experimental de Lagos, e decidimos que seria interessante também nós percebermos o que é isto de ter uma estrutura cultural. Uma vez no Algarve, em meados de 2015, a olhar para o mar, apareceu a CAMA, como ideia de casamento entre nós. Entretanto, fomos ambos para Lisboa, e começámos a trabalhar com a casaBranca, estrutura fundada por Mónica Samões e Ana Borralho & João Galante, e que é agora nossa parceira (aliás, a Joana faz a produção executiva da casaBranca). Em 2019, oficializámos legalmente a CAMA – estrutura que tem servido essencialmente para o desenvolvimento dentro das Artes Performativas e promoção de artistas independentes. Neste momento, a CAMA tem-nos a nós (a mim e à Joana) na direção artística e de produção, mas sou também artista residente. Estamos agora a fazer a produção de Aurora Negra, projeto que esteve em Lisboa e que vai agora ter a sua segunda criação. Além de nós, tem também a produção de Mariana Ferreira, artista, dramaturga e atriz.

A ideia-chave da estrutura sempre foi a descentralização: trazer cá para baixo processos criativos e a educação através da Arte

​Além disto, a CAMA tem também desenvolvido um serviço educativo amplo: direcionado aos jovens, mas também e sobretudo à educação de públicos e à monopolização do setor cultural na região do Algarve. A ideia-chave da estrutura sempre foi a descentralização: trazer cá para baixo processos criativos e a educação através da Arte, continuando aqui o trabalho que desenvolvemos em Lisboa. Até porque temos projetos que viajam muito; que ganharam mobilidade nacional e internacionalmente. A ideia também seria passarmos mais tempo no Algarve nos processos de criação. Este é um pouco do resumo do que temos estado a fazer desde 2015. O próximo passo será um espaço físico, algo que vai acontecer este ano, com o apoio da Câmara Municipal de Lagos. Este espaço físico será direcionado para a área de criação e de residências artísticas, e também para a área de programação cultural, para que se possa continuar a desenvolver este setor em cadeia e o processo de descentralização – ainda que continuemos sempre com esta comunicação paralela com Lisboa, por ser onde vivemos, maioritariamente. Mas, não queremos ir ao encontro da desertificação do Algarve – que não é só um problema ambiental, mas também cultural. Esse tem sido um foco do nosso trabalho: evitar essa desertificação, e perceber que o Algarve não é uma região sazonal, pelo que talvez tenhamos de dar mais tempo, valor e escuta a outras coisas que vão além do turismo.

a Cultura não é um lobbie isolado e pode ser realmente um mecanismo para voltar a restruturar regiões desertificadas e/ou desabitadas.

AR – Acaba por ser arrogante para com a região, abreviá-la a esse estigma de lugar de turismo, lugar de vida apenas sazonal, como se, além do verão, nada acontecesse.
DM – Sim, acabas por educar a população de uma maneira cruel. A população que vive neste território trabalha no verão para sobreviver no inverno, quando, na verdade, podes mostrar que há um leque de atividades que podes desenvolver ao longo do ano e que são essenciais para o teu desenvolvimento como cidadão ativo, como pessoa que quer continuar a trabalhar, a desenvolver-se e a pensar – algo que acaba por ser um pouco esquecido nesta região. Sinto que, nesse sentido, a nossa geração está um pouco mal, e que por isso é hora de avançar com este projeto. Ao apostar nas residências artísticas, a ideia é que possamos acolher pessoas de muitos sítios, tanto nacionais como internacionais, e assim poder fazer um circuito de programação cultural. Também para que as pessoas percebam que a Cultura não é um lobbie isolado e que pode ser realmente um mecanismo para voltar a restruturar regiões desertificadas e/ou desabitadas. Até porque as residências artísticas implicam que as pessoas fiquem cá a viver durante algum tempo, pelo que acabas sempre por mexer com muita coisa: com a população que está à volta e com os produtores culturais. Logo, há todo um planeamento que se pode fazer e que não é só direcionado apenas para a obra performativa que se desenvolve, mas sim para tudo o que se está a mover dentro da população. No fundo, que está direcionado para a forma como abrimos as portas para que a população possa entrar e também para que as pessoas possam perceber que há coisas a acontecer – durante todo o ano e não só durante quatro meses.

São precisos um pensamento e um trabalho que partam da ideia: como é que conseguimos chegar a todos e perceber que os espaços culturais são espaços para todos?

AR – Há semanas, falei com Débora Pinho Mateus, diretora artística do FICLA – Festival Internacional de Cinema e Literatura do Algarve (ao lado de Candela Varas), que me disse: “é preciso popularizar a Cultura”, por oposição ao quase ‘resignador’ estigma da Arte como algo de nicho ou virada para um público do qual eu não faço parte. Sentes algo parecido?
DM – Sinto que cada vez mais um grande problema dos recetores da atividade cultural é continuar a catalogar ao máximo aquilo que se faz na Cultura. Porque isso faz com que o público se separe e divida entre áreas muito específicas, passando a haver o público do Cinema, o da Dança, o do Teatro. Acho que são precisos um pensamento e um trabalho que partam da ideia: como é que conseguimos chegar a todos e perceber que os espaços culturais são espaços para todos? É claro que há coisas de nicho, até porque não o podemos evitar, mas também acho que dar a conhecer esse trabalho a alguém externo faz com que as coisas se tornem menos de nicho, e com que se comece a perceber que hoje vou ver algo adoro, apesar de ser completamente comercial ou popular – e que faz falta e é necessário, mas que amanhã posso ir ver uma coisa que traz algo que eu não estava à espera de ver. E que até posso não ter gostado assim tanto, mas fui confrontado com alguma coisa que me faz questionar ou pensar. E que posso até voltar no dia seguinte, para ver algo que não é de todo a área em que estou interessado, mas que me faz perceber que, afinal, quero ver mais dança, ou mais performance, por exemplo. É esse cruzamento que faz falta na programação cultural, tal como evitar catalogar o que é a Cultura. Em vez disso, quando vou ao Teatro, pensar: o que há dentro dele? Há milhares de coisas dentro do Teatro.
Pensa-se: “só gosto desta coisa, por isso só programo esta coisa porque as pessoas só a vão querer ver.” Mas, se nunca programarmos o resto ou pensarmos numa programação que cruze as áreas, também nunca as vamos conseguir mostrar às pessoas. Este trabalho também tem de ser feito nas escolas: começar a levar o Teatro às escolas ou motivá-las a ir ao Teatro, à galeria ou à exposição. Sinto que há uma falta de empreendedorismo nesse sentido.

​O espaço físico da CAMA vai existir nos arredores de Lagos, a cerca de sete minutos de Lagos de carro, 15 de bicicleta. Não é na cidade, o que é ótimo. É meio no campo, mas com uma curta distância até à praia e à cidade, o que nos permite cruzar diversos públicos. Achamos que essa é também uma necessidade da criação artística: poder usufruir de estar isolado no espaço, mas, ao mesmo tempo, ser um espaço que se abre à envolvência. Eu e a Joana estamos super felizes por começar a trabalhar neste projeto, porque achamos que é um espaço que vai fazer a diferença e que não é só para nós: nós impulsionámo-lo, mas é para toda a gente. Um espaço onde se pode estar a partilhar com outras associações: queremos receber outras associações, como a casaBranca, que tem o Festival Verão Azul; queremos trabalhar num open space em conjunto e continuar a discutir ideias, porque achamos que é essencial acolher as pessoas; que as escolas possam lá ir para participar em workshops, em vez de ser os workshops a ir às escolas, para que assim as crianças e os jovens possam perceber como é que funciona a estrutura cultural dentro dum espaço físico desenhado para estas atividades.


Entrando em VÄRA...

No processo criativo, houve uma proposta de exercício de improvisação, e acabou por aparecer o som do grunhido e o pensamento sobre como é que o lugar de tradicional se relaciona com o contemporâneo, como é que encontramos este som e como é que associamos este som a um híbrido entre o que nós somos e o que é um animal.

AR – "VÄRA" é a palavra sueca para “Ser”. É mera coincidência, ou há relação entre esta tradução, o que a palavra carrega e a peça?
​​DN – VÄRA vem enquanto aglomerado de porcos, grupo de suínos; o trema vem do focinho do animal. Essa tradução também faz sentido para aquilo que o objeto é, mas, inicialmente, vara surgiu como nome coletivo de suínos. É uma palavra bem portuguesa, e que carrega uma simbologia associada à peça. Aliás, a peça reflete-se também à volta desta ideia de coletivo, e de coletivo sozinho: como é que abrangíamos esse lugar de coletivo dentro daquilo de que se está à procura. A peça era parte desse lugar e desse coletivo animal, e pareceu-nos indicado.

AR – Há algum ponto preciso que tenha marcado o início desta ideia?
DM – Esta peça começou numa anterior. Isto é uma coisa curiosa: as criações têm sido sempre informações de peças passadas que passam como porta para a peça futura. VÄRA vem de uma peça de 2019, que estreámos em Lagos e passou por Lisboa e Almada. No processo criativo, houve uma proposta de exercício de improvisação, e acabou por aparecer o som do grunhido e o pensamento sobre como é que o lugar de tradicional se relaciona com o contemporâneo, como é que encontramos este som e como é que associamos este som a um híbrido entre o que nós somos e o que é um animal. Durante o processo, percebemos que estas questões não eram para aquela peça. Então, ficaram guardadas e ficou o desejo de desenvolver esse exercício e perceber ao que podia levar.

Logo no início queríamos trabalhar com muita gente, mas com condições laborais e com tempo suficiente para maturar o objeto. Então, aguardámos a possibilidade de podermos concorrer ao concurso da Direção-Geral das Artes (DGArtes), também para que pudéssemos ter algumas coproduções. Tudo se encaminhou para que se pudesse começar a desenvolver, existia um ponto de estudo e começámos a fazer algumas residências artísticas pelo país, como em Montemor e em Serpa. Ver este trabalho com os ares mais rurais era algo que me interessava – aliás, o trabalho precisava mesmo disso. Tenho estado a trabalhar desde janeiro de 2020 com a equipa nuclear; em maio abriram-se audições em Lisboa para intérpretes / performers. Agora fazem parte sete performers, o que para a Dança em Portugal é um grupo grande (normalmente, não há dinheiro para financiar equipas tão grandes, até porque além dos performers há mais pessoas na equipa).

O processo começou em Montemor, durante uma semana. Esta residência artística foi a primeira, e nela participaram a direção técnica, a direção de produção (Joana Flor) e a Beatriz Dias, responsável pela Colaboração Artística; estivemos ainda via Zoom com João Galante, responsável pelo som. Depois desta residência, houve um processo de pesquisa até maio. Em agosto começámos a trabalhar com as bailarinas e bailarinos. Foi um processo de pesquisa super longo, para saber como se desaguava deste exercício inicial de 2019 e aquilo de que eu estava realmente à procura. Eu formei-me em Artes Visuais e depois em Dança. Enquanto estudava, comecei logo a trabalhar com equipas e companhias muito diferentes, nas áreas da Dança, da Performance, do Teatro Físico, nacionais ou fora do país, com linguagens muito específicas, mas a mim sempre me interessou este lugar do limite do corpo não só físico, mas também emocional; o perceber que existe um corpo para lá do corpo e como é que alcançamos esse corpo para lá do corpo. Essa tem também sido a pesquisa recorrente do trabalho: como é que o corpo é quase um playground, um espaço de brincadeira; como é que querermos testar os limites e elevá-los a limites ainda maiores.

Quando entras neste lugar já entras padronizada por olhares externos e por aquilo que deves fazer, conquistar, ser e não ser.

DM – À nascença, tu és colocada num sítio no qual não escolheste estar. Tu não escolheste nascer! E isso pode ser fascinante, ou não. Para mim é: tu não escolheste estar aqui, e o interessante nisto é que quando entras neste lugar já entras padronizada por olhares externos e por aquilo que deves fazer, conquistar, ser e não ser. Estas são questões que partem muito do meu pessoal e do meu individual, e o meu interesse da pesquisa é também perceber como é que as outras pessoas se relacionam com essas minhas questões: o que é ser suficiente, o que é que tens de provar, o que é o erro e qual é o lugar dele: como é que o erro pode ser potenciador e não uma falha.
Sinto que o corpo é uma espécie de ferida aberta ao longo do teu percurso inteiro. Desde que nasces, há uma ferida que vai acumulando coisas, mas a cicatrização é constante: são camadas por cima de camadas, e a partir daí percebes que o teu próprio corpo encontra um híbrido qualquer como proteção, que te protege de alguma coisa. Esta pesquisa entre o ser humano e o porco, um animal que é tão semelhante a nós, começou especialmente porque a minha mãe vem de um meio muito rural, no Algarve, e temos família no Alentejo. Lembro-me de ser muito pequeno e ir às tradicionais matanças do porco, em casa dos meus tios. Em casa deles, havia uma tradição: o porco não se matava em casa, mas num monte. Havia um trator que trazia o porco pelo desfiladeiro. Eles colocavam as crianças em cima do animal, como se fosse uma procissão, uma parada. Esta imagem ficou-me marcada desde pequeno. Hoje, este assunto cria contestação, mas há também uma qualquer poesia nisto: lembro-me exatamente de estar em cima do animal e de perspetivar uma paisagem à minha volta; um caminho percorrido como numa procissão. A pesquisa para o trabalho também foi essa: como é que encontramos este lugar ritualístico e o relacionamos com as ideias de superação, de suficiência, de aceitarmos que não somos suficientes, que não somos assim tão importantes; de nos acharmos mais importantes do que realmente somos, em paralelo àquilo que é o animal.

A pesquisa começou por essa partilha exata: o choro do suíno nas matanças tradicionais – a última coisa que faz antes de ser morto, e o choro do bebé quando nasce – a primeira coisa que faz: chorar para abrir os pulmões. Questionou-se: como é que encontramos um híbrido entre estes dois choros, e como é que eles se relacionam com uma voz de reivindicação, de potência ou uma de uma construção de país? A pesquisa desta peça foi também a construção de nações individuais: como é que o teu corpo pode ser uma nação ou uma voz de mudança ou rebeldia. Para mim, a rebeldia também está nesta coisa de aceitar o erro como potência.

AR – De purga?
DM – Sim, como é que tu te purgas dentro dos teus erros, das tuas falhas, daquilo que está errado ou não, como é que carregas coisas, mas continuas em frente. Além disso, na base da pesquisa estiveram dois livros: Odisseia, de Homero, nomeadamente o Canto X, em que Cícero transforma os homens em porcos, e Teatro da Crueldade, de Antonin Artaud, bem como artistas plásticos e visuais como Francis Bacon, Walter McOnell, Polly Nor e, na escultura, Berlinde de Bruyckere. Até porque eu vejo a Dança também como trabalho plástico; como possibilidade plástica e não só como uma composição num espaço. Há nela uma plasticidade e um trabalho que a pode levar mais longe daquilo que conhecemos como Dança. Porque a Dança é um veículo que deve estar mergulhado dentro de outros veículos, tal como as artes plásticas e a Literatura. Isso interessa-me muito no meu trabalho: todas estas afluências na pesquisa em volta do individual e do que sinto. Acho que o lugar político das obras vem daí: um lugar que não é direcionalmente político, mas que o roça; que não é tão falado porque parte de um outro lugar emocional e do espetro físico que pode tornar-se reivindicação política.

Painting, Francis Bacon, 1946
Fonte: MoMA
© 2022 Estate of Francis Bacon / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London

AR – Portanto, reivindicação… procuram chamar a atenção para alguma coisa? Há alguma politização aqui?
​­DM – Acho que esse não é o foco, mas… o que partilhamos também no espaço performativo, seja da Dança ou do Teatro, é a disponibilidade. Estares disponível é um lugar politizado. De repente, mostras que coisas inimagináveis são possíveis; que o teu corpo é dotado de coisas que não fazes. Se te apetecer acordar de manhã e ir contra uma parede 70 vezes porque achas que precisas disso para sentir alguma coisa, fazê-lo é uma proibição. Mas, este é um espaço em que o podes fazer. Nesta peça, disponibiliza-se o corpo como matéria aos observadores e aos espectadores, que percebem essa disponibilidade do corpo como um lugar de liberdade e daquilo que podes ou não sentir. Há mudanças que acontecem e que fazem perceber que afinal podes sentir mais, fazer mais ou que não precisas de fazer tanto, ou ser mais racional. Por vezes, pensamos que sentimos muito ou não sentimos nada. Talvez só precise de me dedicar ao físico: e o emocional nasce dele, do físico; não tenho de pôr ou impor nenhuma história atrás – o corpo por si já tem histórias lá dentro. O físico traz-te coisas sem teres de colocar narrativa. Até porque o meu trabalho não é a procura de uma narrativa, mas de uma experiência; uma experiência do corpo e do corpo com a realidade. Passas por coisas que não precisam de ser histórias: podem ser momentos, impressões, e acho que essa realidade que partilhas numa hora e meia num espaço, como acontece nesta peça, podem mudar-te. Pelo menos eu acredito que as coisas podem mudar-te. Adoro os conflitos que gera em mim o confronto com as realidades dos outros, porque são realidades às quais não tenho acesso. Os objetos artísticos deixam-te ter acesso a realidades exercidas de uma maneira muito crua e clara. Mesmo que ao início não pareça assim tão clara, passado um ano, sem dares conta, torna-se lúcida. Sinto que este trabalho não é pensado para mudar – é pensado para nós percebermos qual é a nossa realidade. Tentarmos perceber a nossa realidade, como é que nós nos posicionamos, se nos queremos posicionar de terminada maneira ou se nos queremos sequer posicionar, já é um ato de mudança.

A peça também tem essa ambiguidade: percebes que há um grupo que se move como uma célula una, mas que, ao mesmo tempo, há uma individualidade em cada um deles que não é abafada nem é pedido que seja escondida.

DM – Acho que aquilo que esta peça traz é percebermos que estamos sozinhos, em grupo; que podes estar sozinha num grupo e estar em conjunto; que não há mal em estar-se sozinha num grupo e não há mal em estarmos sozinhos, juntos. Estarmos sozinhos, juntos, pode ser super poderoso, tal como é super poderoso estarmos juntos-juntos. A peça também tem essa ambiguidade: percebes que há um grupo que se move como uma célula una, mas que, ao mesmo tempo, há uma individualidade em cada um deles que não é abafada nem é pedido que seja escondida. Essa tem sido também a pesquisa destes três meses e meio: como é que eu continuo a ser eu, porque não quero ser uma personagem dentro deste objeto – não é uma coisa que eu esteja à procura. Trabalhar com esta pessoa, e perceber como é que cada pessoa se desenvolve dentro do trabalho. Acho isso super importante: como é que podemos encontrar estas identidades individuais, porque, no estúdio, eu não deixo de ser o Daniel. Houve claramente alguns trabalhos em que tive de me adaptar a outras linguagens que não são as minhas, mas isso é uma aprendizagem e é fundamental para aquilo que queres fazer. No entanto, dentro da minha pesquisa individual, a qual sinto ser constante, porque sinto que os trabalhos nunca estão fechados, a tua realidade é importante. Sinto que a tristeza da realidade é super bela, porque te move. Há uma coisa qualquer dentro dessa tristeza, frieza ou dureza da realidade que te move. Perceberes como é que queres redesenhar a realidade e continuar a ser livre, dentro dessa escolha. Isso tem sido o que procuramos aqui dentro, com eles. Tem sido incrível partilhar isto com um grupo de artistas incrível, porque eu assino a criação, mas ela não é só minha. Trabalhar em comunidade é isso. É incrível poder partilhar isto com sete performers incríveis e com a equipa nuclear, a Joana, a Beatriz, a Mariana, o João Galante no som, o Rui Palma na fotografia, que percebem exatamente o que a peça pede, mas têm liberdade para poderem trabalhar dentro daquilo que é a estética do seu trabalho. Este é um trabalho que ganhou muito pelas estéticas de cada artista – até porque não sinto que esteja numa posição de impor uma estética. O trabalho pede coisas e nós servimos como veículos desse pedido. Por isso é que as Artes Performativas – e a Arte em geral, têm um lugar bastante ritualístico que se assemelha um pouco a um lugar sagrado em que as coisas surgem. Ainda por cima nesta peça em específico em que temos uma relação super crua com o corpo, e que partiu muito também do que é a religião, do que é a ferida, do que é purgar; de como é que essa relação existe e coabita. Este processo de partilha com toda a equipa deixou-me muito feliz, apesar de estar agora a chegar ao fim – da criação, não da peça, porque acredito que ela vá circular bastante.

AR – Acho bela essa ideia de tudo ser uma obra aberta, como diz Humberto Eco; de fechar o pano e surgirem 20 novas peças; sequelas, talvez, daquilo que se viu…
DM – Sim! Primeiro, é um trabalho de maturação individual. Mas vamos apresentar a peça agora em janeiro, em Lagos, e em maio vamos estar em Faro, no Teatro das Figuras. Entre estes dois meses há tanta coisa que vai mudar individualmente em nós, que quando voltarmos a apresentar a peça vamos trazer essas novas coisas e questões cá para dentro, para a peça. E talvez aquilo que o meu corpo me vai devolver da pesquisa em maio venha a ser outras questões que tenho agora. Esta relação entre espaço e tempo, e o meu corpo dentro dela: é também isso que permite que a obra seja viva.

O setor cultural foi dos mais afetados, mas não vês ninguém nestes debates a falar sobre ele. (…) Continuamos a idealizar a cultura nas capitais, e esquecemo-nos de que um país não são duas cidades.

AR – Estes últimos debates das presidenciais vieram novamente tornar evidente a abreviação da Cultura; vieram abreviá-la ao alocá-la, uma vez mais, entre parênteses nos demais setores em debate. Ainda assim, VÄRA foi financiada pela DGArtes. Antes disso, sentiste na pele esta suspensão da Cultura pelo Governo?
DM – Honestamente, fui um privilegiado durante a pandemia. Houve sempre trabalho, apesar de ter havido muita coisa adiada e momentos muito estranhos. Ainda por cima, veio numa altura em que a Cultura estava a crescer em Portugal de uma maneira exponencial, e todos nós estávamos espantados. De repente, tudo fecha, o que para os trabalhadores da Cultura foi um caos, porque ficaram privados de desenvolver trabalho fisicamente. Ainda assim, consegui viajar durante a pandemia, em trabalho. Não devia ser um privilégio, mas, tendo em conta o contexto, foi. Para esta peça, começaram a surgir questões: será que vai acontecer, será que vai ser cancelada, será o financiamento que nos deram suficiente? Porque, além do financiamento da DGArtes, tivemos de ter outros coprodutores, se não a peça nem existia. De repente, começas a perceber que não és protegida pelo teu sistema, não tens qualquer tentativa de proteção, ou as que tens são oriundas de pessoas que não têm consciência do que é o setor cultural e que, como não trabalham no terreno, não sabem o que se está efetivamente a passar.
O setor cultural foi dos mais afetados, mas não vês ninguém nestes debates a falar sobre ele. Supostamente, só em 2023 é que VÄRA vai poder estar em Lisboa, porque até lá não há espaço. Continuamos a idealizar a cultura nas capitais, e esquecemo-nos de que um país não são duas cidades. Mesmo para ires a essas cidades é uma dificuldade, porque os lugares estão condensados pelo que aconteceu.

Ao viajar imenso em trabalho e ao trabalhar em teatros muito diferentes na Europa, pude perceber a diferença de realidades – o papel da Cultura e o lugar que ocupa noutros países, por comparação àqueles que assumes em Portugal.

DM –Temos conseguido trabalhar, apesar do caos, das imensas coisas canceladas ou adiadas. Mas, acho que não estamos sequer preparados para aquilo que devia ser um desenvolvimento cultural ativo num país. Ao viajar imenso em trabalho e ao trabalhar em teatros muito diferentes na Europa, pude perceber a diferença de realidades – o papel da Cultura e o lugar que ocupa noutros países, por comparação àqueles que assumes em Portugal.
Não acho que não se esteja a fazer um esforço – há trabalho que se está a fazer e que deve ser valorizado, mas não é suficiente porque não está perto de quem realmente trabalha no setor da Cultura. Esse trabalho tem de ser feito em paralelo com as pessoas que trabalham no setor. Há muito trabalho por fazer, ainda por cima tendo em conta que regredimos imenso com tudo o que aconteceu. Há muita coisa que tem de mudar: não é só o financiamento que está errado, mas também a forma de ver, de programar, de gerir e perceber que as programações têm de dar para todos; temos de perceber que há coisas incríveis a acontecer cá dentro, e que não damos resposta porque é um ciclo viciado, e acho que temos de cortar os ciclos: perceber como é que os podemos mostrar, expandir. É isso que vai fazer com que o setor cultural cresça e dê resposta em muitas mais frentes. E que no mesmo teatro possas ver coisas completamente díspares umas das outras. Acho que é um pensamento necessário. Esta visão da proteção da intelectualidade – de proteger de maneira direcional (direcionas para ver), é uma ideia completamente oposta à de Cultura: tu apresentas coisas e as pessoas tiram as suas conclusões.


FONTE Make It Happen FOTOGRAFIA Rui Palma
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