Fechar os olhos para ver melhor

Há 40 anos, Rosa Martins trocou o Porto por Lisboa. O parco poder económico do agregado familiar e as míseras condições habitacionais culminaram numa meningite que a cegou, aos quatro anos. Apesar disso, como “para cantar não é preciso ver”, a música tornou-se subterfúgio. Por isso, aos 17 anos fez da Rua Augusta palco onde passa mais tempo do que em casa, em Almada. Apesar das dificuldades acrescidas por ser cega, afirma viver “já habituada à companhia que é a televisão”. Deste que foi para Lisboa, a sua presença é marca icónica não só nessa rua lisboeta, como em palcos internacionais. O senso comum diz que cego é aquele que não vê. Mas Rosa é especial, diferente: finge ver. Ver é, aliás, um verbo que impera no seu discurso. Acredita que a imagem que mentalmente forma, com base no que pensa, corresponde à realidade. Talvez “feche os olhos para ver melhor”, como dita o verso de uma das suas músicas.

 

Na foto, Ana Rita Rodrigues e Rosa Martins. Rua Augusta, Lisboa, abril de 2016

 

Há uma espécie de contrato abstrato entre Rosa e o seu taxista: sempre que está bom tempo, liga-lhe para a ir buscar a casa e a levar para o outro lado do Tejo, onde trabalha. Como hoje está de chuva, podia ser um dia de ficar por casa, a cantar só para as paredes. Mas, elas já conhecem as suas músicas de cor e salteado, ao passo que, na Rua Augusta, onde se senta há mais de quarenta anos, há sempre gente nova que as pode ouvir pela primeira vez. Por outro lado, também prometeu a uma menina que lhe dava uma entrevista. Então, ainda que à chuva, decide chamar o taxista e ir para Lisboa.

Entre o Rossio e a Rua Augusta, a bengala ampara o seu andar na calçada. O taxista trá-la pela mão direita e, na esquerda, carrega os sacos de ráfia onde guarda os CD que vende. Deixa-a perto do fogareiro das castanhas, o seu cheiro predileto, diz-lhe "até logo, Rosinha" e volta ao trabalho pelo alcatrão fora.

Desde miúda que gosta de cantar. Os pais não tinham capacidade económica para financiar uma televisão, aliás, “para nada”. Por isso, ia aos sábados a casa de uma vizinha que tinha televisão para assistir a um programa sobre ranchos de folclore.

Em tenra idade, a sensação de ouvir a música na televisão e as histórias que lhe contavam levaram-na a aspirar por também ler aquilo que ouvia e escrever.  Então, aos nove anos foi para Lisboa, onde frequentou uma escola para invisuais e aprendeu o braile.

A sede de autonomia e liberdade fizeram-na sair do asilo de freiras para onde foi, a seguir à escola. Fiel à falsa promessa que fez à madre superior do asilo, foi até ao Porto “para ir ter com os pais” mas, assim que aí chegou, “ala para o comboio e toca a voltar para as ruas de Lisboa”, gaba-se.  

Como o escritório onde trabalha é o banco que monta na calçada lisboeta, há dias em que as núvens-teto desse escritório, são ingratas e, quando colidem, obrigam Rosa a desmontar o estaminé e a migrar para o interior de um café, para não apanhar chuva. Há outros dias em que a pressa não é suficiente, acabando por ficar molhada e constipada. Nesses dias, como fica rouca e não consegue cantar, apenas “escuta, para além dos ruídos, o silêncio que desce como a noite”, como diz outro verso seu. Para além disso, troca a música pelo tricot, enquanto aguarda por um curioso que lhe queira comprar, por 15 euros, um CD.

 Foi numa noite antes de conseguir casa em Almada que, à beira do Teatro Tivoli, na Avenida da Liberdade, Rosa descobriu outro tipo de curiosos: os gatunos. Nessa noite, transformou as portas do Teatro em cama e, pouco depois de o sono chegar, um homem puxou-lhe a caixinha onde guarda a esmola e roubou 25 escudos.

Apesar deste episódio, Rosa não se arrepende da vida repleta de vissicitude que tomou, pois “é com os sustos que se aprende e nos tornamos mais fortes e resistentes”. Foi, aliás, graças a esse nomadismo alegado pela música que consegiu trocar a calçada lisboeta pelos palcos internacionais. Esta transformação deu-se quando André Heller, cantor e compositor austríaco, se cruzou com Rosa e a convidou a participar num festival em Marraquexe. A partir daí, Rosa Martins (nome artístico) levou o fado para a China, Polónia, Reino Unido, República Checa e Alemanha. A imagem que tinha de um avião era de um carro, mas voador e onde cabiam mais pessoas do que num terrestre. Estas digressões musicais e a primeira viagem de avião deram a Rosa uma noção mais próxima da realidade.

Foi da Alemanha que Rosa trouxe a memória mais melancólica. Ao sair do palco onde atuou, “ficou presa na miragem” (expressão que usa para se referir às palmas e ao público que ouviu, mas finge ter visto) e tropeçou nas escadas. Presumiu que um banho aliviaria as dores provocadas pelo acidente, mas não supôs que viesse a não conseguir sair da banheira e a ficar presa,  acabando por nela pernoitar, esvaziando a água quando fria e enchendo de quente sequencialmente, para resistir aos celcius baixos.

Quem não sabe que Rosa é cega não desconfia que seja: sempre que fala com alguém, levanta a cabeça em direção ao olhar do interlocutor, dando a ideia de o estar a ver. Ela própria e aqueles em quem mais confia ironizam a situação: chega um empregado de um dos cafés da rua e pergunta-lhe se hoje não vai ver os amigos ao café. Rosa responde que se esqueceu dos óculos em casa.

 
 

Como, hoje, trocou o fado pela conversa comigo, o tilintar do triângulo de metal, que a acompanha para marcar o compasso de cada música e a identificar no meio dos transeuntes, não se ouve na rua. Por isso, descobri-la neste dia é tarefa mais árdua: implica não seguir o som, mas percorrer a rua até a encontrar. Aparece um dos procuradores, que pergunta ‘o que é feito do fadinho’.  Rosa estica a mão e, ao senti-la apertada, reconhece pela textura da pele e pela festinha feita no cabelo de quem se trata: um emigrante português, seu fã desde que a ouviu num concerto na Alemanha. O admirador pergunta-lhe se prefere dinheiro ou um café e uma nata. A segunda opção vence e, em vez do triângulo, Rosa tilinta a colher com que derrete o açúcar . Como, “só para nós, um cheirinho fica sempre bem”, emerge da chávena um aroma híbrido, de cafeína e bagaço.

O vínculo que criou com a “família da rua” fá-la superar a biológica, com a qual pouco contacto mantém hoje e que não vai além da chamada telefónica. Esta conexão é a prova empírica de que “o essencial é invisível aos olhos”, como diria Exupéry.

Há na rua, contudo, mais gente anónima do que familiar. Dentro dessa, há os que se comovem e param para ouvir e os que sorriem e prosseguem caminho. Depois, há outro tipo de gatunos,  estes mais astutos e que Rosa decifra pelas sombras dos malabarismos que fazem: pedintes que se colocam à sua frente enquanto canta, para dar a impressão de constituirem um grupo. Com esta tática, quem não conhece Rosa e não sabe dessa farsa acaba por dar a esmola aos impostores.

De Coimbra, Rosa conhece apenas “aquilo que vê na televisão”. Por isso, confidencia que um dia verá a cidade ao vivo e a cores, levará “a trouxa” e intersetará o seu fado com o coimbrã.

Para além das ruas onde canta, dos pastéis de nata e do cheirinho a bagaço no café, é também do metropolitano de Lisboa que Rosa extrai regozijo. Devora a intensidade do som que se amplifica à medida que o metro chega e da azáfama dos que correm para entrar antes de as portas fecharem. Paradoxalmente, foi aí que se deu outro episódio de sobressalto, no dia em que caíu para a linha férrea. 

Ao fim do dia, quando céu tapa Lisboa com tons mais escuros, Rosa tapa-se com um casaco. Depois, toma aquela que é a vida de todos os dias que vai para a Rua Augusta: conta as moedas angariadas, para ver se dão para uma sopa na Belapasta (faz apenas uma refeição ao longo dia, “quando não é jantar, é almoço”, sempre nesse estabelecimento) e liga ao taxista para a levar a casa.

Pelo caminho, converterá Rosa o cheiro do Tejo em imagem que visionará à sua maneira. No dia seguinte, se o instinto ou o que ouve na televisão lhe disser que as condições atmosféricas vão ser propícias, voltará para a Rua Augusta. Onde o fado e o triângulo ecoam Chiado fora e a desmistificam por entre os passantes.

 

Fotografia © Second to the Left

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