Europe at Home: o projeto que relata o confinamento na Europa torna-se livro físico
Já não tardava muito quando a brisa suave da baixa de Faro era deixada para trás ao adentrar-se pelas portas do centenário Club Farense, local que viria a ser casa de um grande marco na cidade. Por entre aquelas históricas paredes, circulavam pessoas de todos os gostos, desde os mais fascinados por literatura, até os apaixonados por fotografia. E foi naquele meio onde se apresentou a obra física da iniciativa “Europe at Home”, onde estas duas formas de arte se convergem.
Já passavam das 18h quando os lugares fizeram-se preenchidos e os microfones foram acionados. Diante de uma sala repleta de admiradores, Sofia Martins deu início ao evento de estreia. Consigo, encontravam-se três figuras importantes para o desenvolvimento deste projeto: Lídia Jorge, Vasco Célio e Sandro William Junqueira. Estes são alguns dos inúmeros nomes responsáveis por dar “voz e imagem” ao livro.
Após uma declaração de boas-vindas e de agradecimento do Presidente da Câmara de Faro Rogério Bacalhau, Sofia começou por apresentar a iniciativa, de uma forma que nos fazia pensar e refletir.
Como citou a coordenadora, o projeto nasceu neste momento histórico em que todos nos tornamos alheios. A grande pandemia que nos encontramos até aos dias atuais faz-nos refletir sobre diversos fatores, desde a nossa convivência com nossos agregados familiares, até com a nossa postura perante os que estão além das nossas casas.
“Responsabilidade Individual”. Este é talvez um dos assuntos mais ressaltados ao longo de toda a apresentação da peça. O que cada um de nós tem feito, dentro e fora de nossos lares? Como buscamos tornar o que passávamos “cotidiano”? Quais as sensações que sentimos durante a fase? Estaríamos dispostos a viver o “novo normal”?
Prefácio
Uma das primeiras inspirações atribuídas ao Europe at Home foi o projeto fotográfico Quarantine Windows. Produzido na cidade de Kaunas, Lithuania, a iniciativa tinha como ponto principal retratar a vivência dos cidadãos nas suas casas, e como a cultura, em todas as suas formas de expressão, auxiliava as pessoas durante este momento.
Tendo essa perspectiva em mente, foi possível expandir o projeto não somente com as imagens, mas também com a forma escrita. A complexidade do ser humano e dos sentimentos não poderia ser visualizada somente com a imagem, mas complementar as reflexões com a escrita.
A partir desse momento, o projeto iniciou-se em 10 cidades, contando assim com 20 autores: 10 fotógrafos e 10 escritores.
Não tardou muito até que a iniciativa crescesse e tornasse ativa em 30 cidades, reunindo ao todo 60 artistas de toda a Europa para compor a obra. Assim, ao longo dos três anos, a plataforma desenvolveu-se com seu conteúdo, com estórias e razões para inspirar-se e aprender. Foi então decidido que tivera chegado o momento no qual a obra também seria apresentada em formato físico, como um livro.
A perspectiva de Portugal
Apesar de o projeto ter sido desenvolvido ao longo dos anos em que a Covid-19 esteve presente, a sua produção como livro físico tornou-se ativa em meados de 2021.
Uma das pessoas responsáveis por incorporar a primeira impressão sobre a obra foi a escritora portuguesa Lídia Jorge. A renomada autora já publicou diversos romances, contos e crónicas ao longo da sua carreira, além de servir como inspiração para outras obras, como é exemplificado no filme A Costa dos Murmúrios, baseado no seu conto homónimo.
Neste projeto, Lídia é convidada a realizar a introdução do livro, com base em "There Will be no blood", texto autoral publicado no jornal El País, a 24 de dezembro de 2020.
Ao longo das linhas, Lídia escreve a partir da percepção de uma criança de 5 anos de idade ao observar a pandemia. Os versos seguintes não demonstram medo ou insegurança, e sim alegria em ver os animais a retornar, em saber que o ar que respirava-se era mais puro, e em saber que, apesar de estar dentro de casa, a natureza voltava a desabrochar do lado de fora.
A reflexão que Lídia Jorge nos coloca é voltada a esta situação toda que estamos a viver. Indagados pelo medo de nos isolarmos, não abrimos as janelas para fora, e não observamos que, por vezes, são os momentos de ruptura que nos trazem para perto o que vale a pena valorizar. Não somente nos aproximamos dos outros, como de nós mesmos.
Por entre as paredes portuguesas
Os retratos da cidade de Faro foram realizados pelo fotógrafo algarvio Vasco Célio. Nascido em Angola, Vasco veio para Portugal ainda novo, e desde então viveu na região Sul. A sua proposta para o projeto foi voltado à vivência dos cidadãos de Faro durante este momento.
O seu trabalho apresentou-se de forma a retratar os momentos de transição, e principalmente com o intuito de mostrar as transformações as quais as famílias passavam, e que as casas consequentemente abrigavam. A realidade alterava-se de um lar que era somente um local de descanso, para tornar-se uma fortaleza onde todas as nossas atividades eram realizadas.
Para seu projeto ter a possibilidade de ser produzido, Vasco esteve em contacto com amigos e conhecidos farenses ao longo de vários dias, para que pudessem disponibilizar suas casas e que, de forma orgânica e automática, o dia-a-dia dessas pessoas pudesse ser registado naturalmente.
O resultado, como se era esperado, tratava-se de uma coletânea de momentos únicos. A vida e os locais onde as pessoas frequentavam ao longo do seu dia se convergiam num só, fundindo-se em apenas um espaço: a sua própria casa.
As palavras da solidão
Também representando o projeto em Faro, Sandro William Junqueira trouxe a sua visão como autor, e o impacto que o confinamento teve em respeito a sua criatividade e personalidade. Nascido no Sul de África e vivendo em Portugal desde cedo, o escritor, professor e diretor já publicou diversos romances ao longo da sua carreira.
E apesar de experiente, a sua visão de mundo em relação ao isolamento social, e que deixou cravada em suas palavras era a partir de uma perspectiva frágil. Os seus versos eram repletos de insegurança e medo, a retratar como a realidade se tornou mais assustadora e trágica do que a própria ficção.
Durante toda a apresentação, Sandro nos permitia visualizar, através de suas palavras, como a sua colaboração foi redigida pela sensação de vazio e incerteza. Como disse o escritor (e também relatou em seu texto para a obra final), foi a ausência de uma inspiração e de busca pelo seu âmago que serviu para inspirá-lo ao longo do artigo. A busca por um sentido qualquer naquele momento era algo que estimulava-o a escrever.
Epílogo
Assim como em clima de festa se começou, o desfecho do evento também fora recebido de uma maneira calorosa, com aplausos e boas vibrações vindas dos participantes. O ambiente, repleto ainda de curiosidade, tomava agora uma nova forma. As pessoas que lá estavam tinham um novo olhar, não mais de captar o exterior, mas sim de compreender tudo o que lhes foi dito, mostrado e questionado. O medo, apesar de grande ditador da sociedade, perde seu posto de motivação para um outro sentimento: a curiosidade.
A falta de conhecimento a respeito de um tópico pode gerar estas duas vertentes. O projeto Europe at Home apenas enfatiza esse fator, mostrando ainda esta percepção da realidade em diversas cidades do continente europeu. O retrato da obra, de forma irónica, permite-nos criar uma sensação ambígua de desespero e tranquilidade ao mesmo tempo.
A iniciativa, para além de auxiliar os apreciadores durante este momento de complicação, ainda faz parte da candidatura de Faro para a Capital Europeia da Cultura 2027. Apesar de diversas cidades também estarem a concorrer para este título, o projeto pretende englobar abertamente todas as cidades e artistas europeus que tenham interesse em participar. Os contactos e demais informações técnicas podem ser acedidas no site oficial do Europe at Home.
FONTE Make It Happen FOTOGRAFIA Epopeia Brands™ | Alexandra Farinho e Rebeca Fernandes