Rede 8 de Março| Mourana Monteiro: “uma das maiores dificuldades sociais é a iliteracia política – a falta de conhecimento dos Movimentos Sociais e de como é construída a História”
A que está sujeito este corpo por ser meu corpo?
Por nele habitar o sexo e depois – só depois, o género?
O que determina quando e onde devo estar, fazer, dizer,
por carregar esses e não outros sexo, género, corpo?
Pelo que brada o feminismo, hoje? O que reivindica, significa?
A 28 de fevereiro de 1909 assinalava-se pela primira vez o dia da mulher trabalhadora. Nesse dia, uma jornada de manifestações pela igualdade de direitos civis – em particular pelo voto feminino, percorreu as ruas de Nova Iorque. Apenas 16 anos antes (1893) estava a Nova Zelândia a tornar-se o primeiro país a garantir o sufrágio feminino, depois do movimento de Katherine Wilson Sheppard. Em Portugal, segundo o Centro de Documentação e Arquivo Feminista, uma primeira tentativa tinha sido feita nas Cortes Gerais de 22 de abril de 1822, quando o deputado Borges de Barros apresentava uma proposta para o direito de voto das mulheres com seis filhos legítimos, acusando ainda os homens de manterem propositadamente as mulheres na ignorância, receando a sua superioridade. “Não há talentos, ou virtudes em que elas não tenham rivalizado e muitas vezes excedido aos homens”, argumentava Borges de Barros. A proposta do deputado não chegou a ser admitida à discussão parlamentar, pois, defendia o deputado Borges Carneiro, “trata-se do exercício de um direito político e deles são as mulheres incapazes. Elas não têm voz nas sociedades políticas: mulier in ecclesia taceat, diz o Apóstolo.”
Em 1911, dois anos depois de Nova Iorque, Portugal junta-se à luta: quase a fazer um ano da implantação da República, Carolina Beatriz Ângelo desafiava a lei que ditava que podiam votar os “cidadãos portugueses com mais de 21 anos, que soubessem ler e escrever e fossem chefes de família.” Carolina exigia votar para a Assembleia Constituinte nas eleições de 28 de maio desse ano, ainda que impedida por António José de Almeida, republicano e ministro do Interior durante o Governo Provisório. Perante a queixa de Beatriz Ângelo no tribunal, o juiz argumentava que “é simplesmente absurdo e iníquo e em oposição com as próprias ideias da democracia e justiça proclamadas pelo partido republicano” proibir uma mulher de votar. Ainda assim, em 1913 o Governo reescreve a lei de modo a limitar o direito de voto às mulheres: “São eleitores dos cargos políticos e administrativos todos os cidadãos portugueses do sexo masculino, maiores de 21 anos, ou que completem essa idade até ao termo das operações de recenseamento, que estejam no gozo dos seus direitos civis e políticos, saibam ler e escrever português e residam no território da República Portuguesa”. O voto feminino seria introduzido em Portugal em 1931, mas só após a Revolução de 25 de Abril de 1974 se consagraria o sufrágio universal e seriam abolidas as restrições ao direito de voto baseadas no sexo dos cidadãos.
De feminismo a feminismos
É na segunda metade do século XIX que o termo “feminismo” surge pela primeira vez nos dicionários ingleses e franceses, depois de vários movimentos sufragistas liderados por mulheres em suplício pelo direito ao voto. O que aparentava um problema privado e particular à mulher aproximava-se agora de questões públicas, naturalizadas e acirradas por uma desigualdade de género estrutural que se reforçava pela soberania masculina e patriarcal. Exigia-se o que ao homem havia sido de acesso natural e quase intrínseco ao sangue – o voto, a participação política, a vida pública e social, como se o sexo e o género fossem capazes de ameaçar uma desenvoltura intelectual capaz de tomar decisões políticas; de ditar a dignidade humana; de rasgar a universalidade que outrora, num iluminismo entretanto ofuscado, parecia sublime. A esta primeira onda feminista, de questionamento da involuntária e passiva submissão a determinados papeis, seguiu-se aquela que começava a ser uma luta do corpo – décadas de 60 e 70, a luta versa na condição de exploração do sexo. Nesta altura, em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituía o 8 de março como Dia Internacional das Mulheres, que nesse ano se celebra pela primeira vez num Portugal acabado de sair da ditadura salazarista, por força do MDM – Movimento Democrático das Mulheres, e pelo MLM – Movimento de Libertação das Mulheres. A reflexão incide agora na origem da condição feminina – por que é a mulher oprimida? O que têm em comum as mulheres do mundo que as coloca, coletivamente, numa posição generalizadamente pior à dos homens? O sexo, conclui-se. A opressão baseada no sexo. Fala-se de violação, de violência sexual como ferramenta de manutenção do poder masculino. De divisão (segregação?) sexual no mercado de trabalho, onde a disparidade salarial é semblante. Da capacidade reprodutiva e da manutenção da família nuclear como iscas sumarentas à manutenção de um estado patriarcal e capitalista. Servida de um pensamento lato, Angela Davis protagoniza a discussão, alargando a discussão de género a catalisadores que o afetam:
“O feminismo envolve muito mais do que apenas igualdade de género. E envolve muito mais do que género. O feminismo deve envolver uma consciência do capitalismo (quero dizer, o feminismo com o qual me relaciono, existem vários). Tem que implicar uma consciência do que é o capitalismo, o racismo, o colonialismo, o pós-colonialismo, o capacitismo e que existem mais géneros do que podemos imaginar, e mais sexualidades do que jamais pensamos que poderíamos nomear.”
Angela Davis
Em 1989, Kimberlé Creenshaw falava de interseccionalidade, segmentando a opressão da mulher em categorias – raça, classe, sexualidade. Creenshaw põe em causa a universalização do conceito de mulher, defendendo o conhecimento das diferentes realidades, experiências, identidades socioculturais em que se inserem e relações de poder intrínsecas a cada uma dessas identidades. O entendimento de necessidades particulares como ponto de partida para reformas políticas mais inclusivas e justas, acreditar-se-ia. No ano seguinte, Judith Butler escrevia Problemas de Género – Feminismo e Subversão da Identidade, onde ideias como o corpo e sexo enquanto categorias produzidas performativa e culturalmente, a transição atroz da heterossexualidade para a heteronormatividade das relações sociais e a resultante constituição linguística pela qual se apropria o real, são ideias emergentes e resvaladas para a teoria Queer que se desenvolve de forma mais profunda ao longo da década de 90.
Passado-presente
De acordo com o “Relatório sobre o Progresso da Igualdade entre Mulheres e Homens no Trabalho, no Emprego e na Formação Profissional, 2019”, apesar da descida da disparidade salarial entre sexos de 2017 para 2018, quer na remuneração média mensal de base quer na remuneração média mensal ganho, a disparidade reflete-se nos números relativos ao salário médio: 1.269,7 euros para os homens; 1.044,2 para as mulheres, bem como no salário base: 1034,9 euros para os homens; 886€ para as mulheres. A par disso, há 61% de mulheres empregadas face a 39% de homens nessa condição – ainda que 59% sejam cargos de chefia, face a 41% ocupados por mulheres (Fonte: GEP/MTSSS, Quadros de Pessoal).
O trabalho como lugar foi conquistado, mas é nas condições que nele a mulher enfrenta que recaem agora as lutas. Fala-se de uma quarta onda feminista, pautada pela organização pelas redes sociais, usadas em peso como suporte de conscientização e propagação dos ideais feministas. Fala-se de violência, da representação mediática da mulher, de abusos no trabalho. Denunciam-se a frugalidade e a inoperância da Justiça que mitiga o assalto à dignidade da mulher. Grita-se pelas silenciadas. Grita-se pelo fim da disparidade das condições de trabalho. O significado de feminismo agita-se e agiganta-se, às causas antigas juntam-se novas nuances, mas algo há de intemporal nas lutas feministas: são feitas na rua, de olhos postos no justo, no igualitário, no digno – três vetores ainda medíocres quando voltados para a Mulher, mas que redes como a de 8 de Março vêm exaltar.
Rede 8 de Março
A 25 de novembro de 2011 dava-se a Marcha pelo Fim das Violências contra as Mulheres, juntando associações feministas, antirracistas e de defesa da comunidade LGBT, inspirando a criação da Rede 8 de Março. Hoje, é uma das principais estruturas feministas em Portugal, atuando como plataforma que junta pessoas a coletivos, associações, organizações políticas e sindicatos.
Porto, Barcelos, Braga, Guimarães, Coimbra, Lisboa, Faro. Estas são algumas das cidades onde a Rede 8 de Março tem chegado, e que a 8 de março deste ano voltaram a ver cheias praças e ruas – não para lançar odes inócuas ao Dia da Mulher com rosas e bombons, mas para reivindicar.
Estamos na última cidade dessa enumeração, e descemos para o Jardim Manuel Bivar – bem no coração da capital algarvia, onde temos encontro marcado às 17h30. Está frio e vento, mas algo há que faz resistir quem se junta. Com o gravador vou registando quem vem chegando, enquanto a Rebeca o faz pela imagem, assumindo de vez em quando a função de para-vento para lhe fintar o desejo de me estragar o som.
Pouco depois das 17h, escutam-se as primeiras palavras de Mourana Monteiro, porta-voz do encontro: “pelas mulheres que não podem estar aqui, temos de lutar e falar. Tirá-las das mãos do patriarcado; tentar encontrar um espaço seguro em Faro. Contra a violência de género. A objetificação da mulher. O asséido sexual. A violência doméstica. A violação. O femicídio. Contra as menores oportunidades de aceder a salários e cargos melhores.”
Convidadas a partilhar as razões que as trouxeram ao encontro da Rede 8 de Março, ao manifesto de Mourana juntaram-se algumas intervenções, como são exemplo a de André e a de Marina:
“não é justo que uma mulher saia à rua e se sinta ameaçada. Se algum dia tiver uma mulher ao meu lado, quero que a sociedade a veja igual a mim”, diz André;
“finalmente posso dizer o que penso. Precisamos de educar as nossas crianças para que não tenham medo de falar, de se expressarem”, diz Marina.
Nesta primeira hora de encontro, falou-se ainda do mito da imparcialidade imposta ao jornalismo, que arrada o jornalista para uma injusta posição de espectador passivo, e o obriga a aceitar a realidade como indolor. João Vasconcelos, deputado do Bloco de Esquerda, dirige o pensamento “para as mulheres na Ucrânia e da Rússia.” Depois disso, refrões como “my rights, my voice, my body, my choice”, “a nossa luta é todo o dia, somos mulheres e não mercadoria” e “mulheres unidas jamais serão vencidas”, ecoavam ruas e tarde afora.
Fotografia © Rebeca Fernandes
Já era noite quando se entrava na última hora de encontro, altura em que são criados pequenos grupos, entregando a cada um a tarefa de refletir e identificar principais problemas sociais, soluções e vozes necessárias ao debate. Resumo dessa “Assembleia”: O primeiro grupo identifica como problemas “a violência, que se estende também contra a natureza e o ambiente. A forma com que a mulher é retratada nos media pode também ser violência para com ela.” Como soluções, fala-se em “educar crianças e adultos”, com vista a afastá-las da violência. Quem trazer para a discussão: “além de políticos, diretores de universidades.” O segundo grupo aponta como problemas “a construção social feita de estereótipos de género. A legitimidade de o homem dizer à mulher o que vestir, dizer, fazer ou onde estar. O assédio: «Tenho 14 anos e fui assediada mais vezes que as que consigo contar pelos dedos. À luz do dia, com pessoas à volta.»” Quem deveria estar na discussão: "alguém que consiga levar isto para outro nível. Estamos aqui para fazer o que podemos, mas é preciso que quem está no parlamento - mulheres e não só, pegue nestas questões e as discuta também. Há comunidades que nem sequer podem fazer o que estamos a fazer."
Já o terceiro grupo expõe como problemas “a Ideia de que o feminismo é só para mulheres: temos de perceber que todos são parte disto e têm algo a dizer. Reconhecer que esta luta não é só nossa - é uma luta em prol de todos; dos Direitos das Mulheres, mas também do planeta, dos animais. Estas questões afetam-nos, a todos. Falámos muito sobre patriarcado, e não se trata apenas de dar flores às mulheres: há tantos problemas estruturais que por vezes nos passam despercebidos.” À lista junta-se “violência e assédio: alguns tipos de assédio não são validados; são vistos como normais. A ideia de que a mulher deve sofrer pelo que faz não é válida. Hoje já devíamos ser todos conscientes destas questões, mas ainda há tanta gente a sofrer de transfobia.
Finalmente, o quarto grupo identifica como problemas “a opressão; as questões de saúde mental que não são reconhecidas; as pressões em mulheres que, em tantas partes, as impedem de coisas que deviam ser banais, como comprar um carro.” Junta-se “a sinonímia entre sexo e género” – entre sexo biológico não escolhido e género – construção sociocultural à luz da qual se atribui (impõe?) características e papeis à pessoa consoante o sexo. Como soluções, propõem-se a “educação com base no respeito e empatia. O capacitismo. A literacia para gerar consciencialização e sensibilização em todas as camadas sociais.”
Mourana Monteiro:
“uma das maiores dificuldades sociais é a iliteracia política – a falta de conhecimento dos Movimentos Sociais e de como é construída a História”
De Palmela para Faro, Mourana é formada em Psicologia e representante da Rede 8 de Março no Algarve desde 2019. Diz que acordou para a política de ruas em 2019, com a greve climática estudantil. Nesse ano participou não como organizadora, mas como manifestante, em Lisboa - a primeira manifestação em que participou voluntariamente. Recorda quão “interessante foi perceber os espaços em que nós podíamos ter voz e ouvir pessoas que falavam e pensavam da mesma forma que eu.” No final desse ano regressou ao Algarve, entrando na Rede que lhe é hoje “ espaço de mulheres empoderadas que querem lutar por justiça social, em particular pela igualdade de género. É este sentimento de pertença e de não estar sozinha, perante a insatisfação e o descontentamento de uma sociedade machista, e por saber que existem mulheres como eu que querem fazer esta resistência feminista” que a Rede 8 de Março significa para si “a esperança que tenho num futuro melhor, numa sociedade feminista.”
Conversámos com Mourana Monteiro sobre a Rede de 8 de Março, sobre feminismos e sobre o encontro realizado nessa tarde, na baixa de Faro - um momento que abaixo se transpõe.
Fotografia © Rebeca Fernandes
O que é ser feminista, hoje? Que diferenças sentes que existem entre o feminismo de hoje e as ondas "passadas", dos anos 20, 60 e 90?
Acho que às vezes quando falamos temos de expor se estamos a falar de um ponto de vista ocidental, de mulher branca, cisgénero, heterossexual num dos países mais seguros do mundo. Portanto, quando falamos de História e de movimentos sociais em geral, é importante fazer esta viagem no tempo e no espaço. Por um lado, quando comparamos a nível ocidental o feminismo do passado com o de agora, percebemos que a mulher conquistou espaços que antes não tinha. Como tal, já temos garantidos esses direitos conquistados pelas mulheres que vieram antes de nós e que lutaram para que os tivéssemos. Não temos de lutar por um espaço laboral. Lutamos sim para que no espaço laboral que já ocupamos haja condições de trabalho, remuneração, valorização e destruição dos papeis de género. Queremos esta igualdade no trabalho, queremos o término da disparidade salarial. Ocupámos o espaço de trabalho, mas não perdemos as tarefas do espaço de casa. Então, o feminismo hoje também reivindica pela divisão dos papéis, das tarefas domésticas, do cuidar de filhos e familiares doentes. Acho que hoje estamos mais acordadas para a necessidade de diferentes tipos de feminismo, ou, pelo menos algumas pessoas estão mais atentas e contra esse feminismo neoliberal. O feminismo interseccional que nós defendemos tem em conta esta multiplicidade de mulheres. Esta é a diferença: o feminismo, hoje, tem de ser um feminismo antirracista, um feminismo que entenda que dentro das mulheres existem mulheres racionalizadas e mulheres migrantes que sofrem descriminações que nós não sentimos. Um feminismo que perceba que mulheres lésbicas são mais sexualizadas que mulheres heterossexuais; que mulheres transgénero são mais violentadas que mulheres cisgénero. Portanto, acho que hoje reconhecemos uma multiplicidade de mulheres que antes a grande maioria das feministas não reconhecia.
Por outro lado, de um ponto de vista mundial, há várias zonas no mundo onde ainda é preciso fazer a luta que as feministas fizeram no passado. Ainda é preciso libertar a mulher de um casamento violento; dar à mulher a oportunidade de trabalhar, de se divorciar, de viajar, de ter um conjunto de direitos que nós, hoje e aqui, temos como garantidos. Em certos lugares há ainda essa dominância patriarcal, essa “responsabilidade” do homem – seja pai, irmão, marido, sobre a mulher. Ainda há um caminho a percorrer.
Fotografia © Rebeca Fernandes
A teu ver, qual o papel da sociedade civil na luta feminista? Sentes que só através dela é possível enaltecer ou chamar a atenção para a lacuna das agendas políticas a este respeito?
A triste realidade é que a grande maioria das pessoas que estão no poder e que têm tomada de decisão são homens cisgénero, heterossexuais, brancos e de meia idade. Essas pessoas, sem a capacidade reflexiva e sem a consulta que os decisores políticos não fazem com a população, não vão conseguir sequer compreender essas lacunas. Por outro lado, essa falta de representação da mulher é também um dos motivos da importância da sociedade civil, que é onde estão as mulheres. A maior parte dessas pessoas beneficia desta ordem social de homem acima da mulher. Como tal, não vão ser eles a reverter esta disparidade salarial - caso contrário, já o teriam feito há muito tempo.
A sociedade civil tem um papel importantíssimo porque é aqui que está essa multiplicidade de mulheres representadas. É nestes espaços horizontais e participativos que nós podemos ter voz. É através desta pressão política da luta coletiva que as pessoas que estão no poder vão ser obrigadas a mudar alguma coisa. A solução para melhorar a democracia e para fortalecer uma sociedade mais justa e feminista tem de passar pela sociedade civil. Tem de ser através das pessoas regulares, das famílias, das organizações, das escolas, dos artistas. De todos contextos que hoje temos porque é aqui que estão representadas as multiplicidade de opressões, e também de soluções, e criatividade. Nós cingimo-nos muito àquelas pequenas pessoas que estão no poder e àquelas indústrias, mas esquecemo-nos de que temos 10 milhões de cabeças que podiam estar a pensar para estas soluções e que podiam estar a trabalhar nelas conjuntamente. Como tal, sem dúvida alguma que estes movimentos sociais são necessários para chamar a atenção para o feminismo, mas, mais que isso: para pressionar e para dizer: “nós somos mais de metade da população. Se nós pararmos, o mundo para. Por isso, há muitas coisas que têm de mudar, e temos de começar agora.”
Viro agora para ti o exercício final do nosso encontro: que principais problemas existem hoje numa sociedade que ainda releva a Mulher, como solucioná-los e quem trazer para o debate?
Uma das maiores dificuldades é a iliteracia política - a falta de conhecimento de História, dos Movimentos Sociais e de como é construída a História. Só através do conhecimento sobre como nasceram as teorias de género e as evolucionistas, de como é que nós temos os direitos que temos e o que está a acontecer nos outros países é que vamos poder, enquanto sociedade civil. perceber que os direitos que as pessoas têm foram conquistados nas ruas. Então, é através das ruas e da organização política e coletiva e dos movimentos de base que vamos conseguir mudar alguma coisa. É preciso reconhecer os problemas e que as pessoas percebam que a solução desses problemas tem de passar pela organização da sociedade civil. Acho que estes conhecimentos vão ajudar a desconstruir os estereótipos do patriarcado e ajudar a trazer mais mulheres para a luta.
Uma outra dificuldade que encontro é o próprio machismo interiorizado por parte das companheiras. Que foram formatadas tal como nós fomos todas, e que como tal acabam por perpetuar. Acho que é mais difícil unirmo-nos se continuarmos a perpetuar estereótipos, ainda que internamente entre nós, mulheres.
Além disso, é um problema focarmo-nos somente na educação. As crianças são o futuro, sem dúvida, mas não podemos esperar pelas próximas gerações. Esta ideia de que os adultos e os idosos são incapazes de aprender está errada, e é preciso começarmos a educar os adultos que existem hoje. Há um claro problema com a justiça e acho que as pessoas, em particular as mulheres, perdem fé na justiça porque a justiça é machista. Porque a justiça continua a dar penas suspensas de violações, penas suspensas de violência doméstica. A sociedade e a justiça continuam a só valorizar a violência contra a mulher quando ela aparece morta. Precisamos de ter uma justiça feminista a funcionar para que as mulheres percebam que é através da justiça que podem resolver os seus problemas. Uma justiça efetiva, que de facto condena o machismo numa sociedade, é o primeiro passo para combatermos todos estes problemas que consideramos crime. E se são crime, têm de ser tratados como tal.
Último problema: a falta de tempo, que é transversal às lutas sociais em geral, mas à mulher é mais complicado porque temos mais tarefas no nosso dia a dia, pelo que esta sobrecarga mental e física acaba por nos dar pouco tempo livre para podermos refletir, pensar, nos organizar. Além de menos horas de trabalho e melhores salários, é preciso garantir alguma flexibilidade para conseguir reunir grupos de mulheres e descentralizar das capitais, das grandes áreas urbanas. Porque as mulheres pobres estão mais afastadas, estão mais na periferia, têm horários diferentes, acesso a recursos diferentes. Temos de nos adaptar à multiplicidade de mulheres que temos. É imperativo trazermos para a discussão todas as mulheres; a comunidade queer. É importante que paremos de distinguir estas duas lutas e percebamos que, ao fim ao cabo, são ambas contra o patriarcado. A questão dos papeis de género e a da sexualidade afetam não só as mulheres, mas também pessoas da comunidade LGBT. Por isso, acho importante estarmos ligados a ambas as lutas, juntando decisores políticos, indústricas, líderes informais de comunidades, para que em conjunto possamos criar uma aliança internacional – aprender o que se faz lá fora e trocarmos experiências. Acho que só esta cooperação e esta organização internacional é que vão permitir mudanças efetivas por todo o globo. Queremos libertarmo-nos e libertar Portugal, mas queremos também todas as mulheres livres, independentemente de onde elas vivam. A nossa sobrevivência e resolução destas crises machistas tem de passar pela organização feminista internacional.
Houve algo que te surpreendeu na manifestação?
Foi altamente complicado organizar esta ação porque, no ano passado, as pessoas que estavam na Rede 8 de Março eram maioritariamente de Lisboa e Setúbal. Eram trabalhadores-estudantes no Algarve, mas este ano já cá não estavam. Então tivemos muita dificuldade em ter pessoas no terreno para fazer panfletagens, colar cartazes e estar no dia da ação. Houve também companheiras que não conseguiram pedir folgas do trabalho, outras por causa do vírus. Quando cheguei, pensei que fosse estar sozinha. Também tivemos problemas na comunicação interna, pelo que não houve muita divulgação nem muita comunicação social presente. Mas fiquei surpreendida pela quantidade de pessoas presentes. Fomos muitas! Fiquei também surpreendida pela quantidade de pessoas internacionais que estavam; pelas pessoas que estavam só a passar ou de férias e se quiseram juntar a nós. Fiquei mesmo muito comovida por saber que quase 50 pessoas se juntaram ali, no Algarve, ao final do dia. E não foi só o juntar: foi o participar, foi o apresentar-se, o partilhar porque ali estava e porque é que a luta feminista é a luta da nossa vida. Tive toda essa alegria comigo durante a última semana!
O que simboliza para ti a presença de não-mulheres numa manifestação feminista?
Por um lado, acho que só é possível mudar a sociedade com a participação de 99% da sociedade. A razão pela qual temos estes problemas é porque os homens os perpetuam. Por isso, eles têm de fazer parte da solução. Não é só ensinar mulheres a proteger-se. É preciso ensinar homens a não violentar e a não serem machistas. Eles precisam de estar nesta construção de sociedade que nós imaginamos. Por outro lado, este movimento feminista existe porque não temos voz na maior parte dos espaços. O movimento feminista também deve ser a construção de um espaço em que é dada prioridade à mulher. A noção de justiça reparativa parte desta ideia de que, para ajustar os desequilíbrios na sociedade, neste espaço a mulher tem de ter voz. Porque do lado de fora os homens têm mais voz que a mulher; que a mulher racializada; que a mulher queer. Temos de equilibrar os espaços e dar mais voz àquelas pessoas que fora desses espaços têm menos voz. Ou, melhor, têm voz, mas tentam calá-las. Voz as pessoas têm, só não as deixamos falar. Fico feliz por ter a presença de pessoas não mulheres, sabendo que elas são aliadas e que o seu ponto de vista e de fala devem existir, mas tendo em consideração tudo aquilo que são as desigualdades nos espaços sociais e como tentar equilibrá-las nestes novos espaços.
Achas que esta manifestação abriu portas para o futuro? Para um Algarve mais feminista?
Primeiramente, quelas pessoas e para mim foi este boost de esperança e confiança para construir a sociedade de que nós precisamos. Depois da “Assembleia” que fizemos no fim da ação, decidimos que no dia 8 de cada mês nos iríamos juntar. Espero que este tenha sido o primeiro momento deste grande movimento feminista no Algarve; que daqui se construa uma rede de coletivos e de pessoas individuais que, mais que assinalar o dia 8 de março, estão presentes na sociedade civil todos os dias, ou pelo menos tenta estar ativa e com atividades abertas no dia 8 de cada mês. Este é o nosso objetivo para um Algarve e um Portugal mais feminista. Independentemente da dimensão das atividades, acho que é preciso ter a humildade de perceber que o Algarve é uma região política e culturalmente subdesenvolvida, pelo que o investimento não vai muito além do turismo e da hotelaria, razão pela qual não é muito frequente haver movimentos sociais e políticos com uma expressão muito grande na região. Então, acho que ter um pátio com 30 a 50 pessoas a reunir mensalmente para discutir assuntos e desenhar soluções é um primeiro passo incrível para o Algarve - não só para o movimento feminista, como pelo movimento de justiça social em geral.
Pensas continuar a desenvolver estes encontros? Se sim, em que formato?
É claro que queremos. Aliás, este foi o primeiro de muitos. A ideia é começarmo-nos a encontrar ao dia 8 de cada mês. A ação vai variar de acordo com aquelas que forem as necessidades e as disponibilidades, e as próprias ocasiões. É importante que tenhamos diferentes tipos de atividades: umas mais pedagógicas, desde palestras, a talks e grupos de leitura, para nos educarmos umas às outras, mas também espaços de lazer, de partilha, de compreensão e espaços afetivos para que possamos aguentar e suportar o resto das adversidades do dia-a-dia.
Temos de ter este espaço e esta posição política e reivindicativa de ações e manifestações que demonstrem esta insatisfação e esta necessidade de mudança. Um espaço e uma posição que além de criticarem, apontem soluções para esse futuro que nós queremos.
Fotografia © Rebeca Fernandes