Quando "a alma é o espelho dos olhos"(?) /O mundo das preferências codificadas
1. Parti um espelho, foi a minha primeira vez e dizem que dá 7 anos de azar. Primeira inferência: devo durar pelo menos mais 7 anos. Segunda inferência: talvez encontre a Alice do outro lado do espelho. Terceira: "azar" é uma palavra de raiz árabe para "felicidade" e "acaso". Quarta: devo pesquisar o que posso fazer para escapar da má sorte. Conclusão: tenho de livrar-me do espelho partido! Coloquei o espelho no vidrão, fazendo com que este voltasse a partir-se em mais pedaços.
Parti o azar! Será que acumulo mais anos de azar ou mantenho a contabilidade só nos 7 anos?
O facto de o reciclar talvez me permita ter um destino eco-friendly. Contudo, descobri, a posteriori, que, por princípio, não devia tê-lo colocado na reciclagem. Parece que não se recicla como o vidro comum. Tenho agora um duplo peso na consciência, fica aqui o alerta! Entre o que me contaram e algumas pesquisas na internet, descubro que o teria, supersticiosamente, de afogar, enterrar ou queimar! Enfim, o destino do espelho já tinha sido traçado quando descobri tudo isto...
2. Sabemos que a nossa bolha digital apenas vai alimentando as preferências que vamos manifestando (nos motores de busca). Há nisto algo de irritante, pois há algo na minha preferência que deixa de ser minha.
O prolongamento das minhas preferências não tem de ser, necessariamente, preferível!
Chego, por este esquema ou algoritmo que multiplica aquilo de que gosto, a enjoar das minhas preferências! Claro que estes automatismos informáticos têm as suas vantagens. Como sou perdido e apressado, os mapas (GPS e outros) chegam a descobrir primeiro do que eu onde quero ir. Tenho de usar a trágica expressão contemporânea: "é um facilitador!" Com tanta facilidade e ajuda é cada vez mais difícil encontrar aquilo que, no dizer de Ariano Suassuna, "humaniza" as cidades: um "beco sem saída"! É difícil cair naqueles apertos que pelo esforço nos conduzem à superação e à surpresa inesperada! Afinal, não foi por um erro de navegação que, querendo ir para a Índia, se chegou ao Brasil?
FONTE: Rui Rego FOTOGRAFIA: "(n)a Bolha" de Inês Carvalho
3. Sempre apreciei a ideia de saber "de cor". Guardar algo, colocando junto do coração ("cor"). Citando o Poeta: "Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,/velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela/ou ser por ela." Na sordidez dos campos de concentração havia entre os cativos quem soubesse longos textos de memória. Se "os olhos são o espelho da alma" — Oculi speculum animae sunt —, aqueles seus olhos ainda podiam ser espelho de uma alma vasta, mesmo que tentassem desumanizá-la. Tinham em si "as planícies e os vastos palácios da memória", como dizia Santo Agostinho. O que dizem os nossos olhos? Cada vez mais dizem só o que veem: simulacros iridescentes de alta definição, com múltiplos filtros, mas sem cheiro, nem sabor, sem narrativa!
Não estaremos a inverter a sentença latina e "a alma é o espelho dos olhos": Anima speculum oculorum est? É-se só o que os olhos veem? Há quem viaje e disso só traga fotografias sem trazer uma imagem do que viu! Tudo um cartaz — propaganda sem reivindicação! Uma memória como postal turístico! Se confiarmos quase tudo à memória digital (externa), praticamente não narramos histórias pelas nossas próprias palavras. Pode a palavra perder protagonismo para um link, um vídeo, uma selfie exótica, coisas vistas algures? Apetece asseverar: Prefiro as mil palavras que uma imagem vale! Contar e repetir o que nos emociona é encher de ecos aquele "vasto palácio", é acrescentar um ponto ao que se conta, reverdejando essa "planície" interior de que fala Agostinho. Nenhuma fotografia sozinha substitui um excurso, um beco sem saída, um recomeçar improvisando, um atalho descoberto a contragosto. O flache pode facilitar a vista rente à sobrevivência, mas não revela uma profundidade d'alma, um eco sentido e mastigado pela interioridade de alguém! Salva-se assim, é claro, a fotografia artística, pensada e sentida, ou qualquer outra que não seja mera banalidade arquivada na cloud do esquecimento.
Partir o espelho da nossa bolha digital talvez nos permita um "azar" neste tempo de deserto. "Azar" entendido na raiz árabe da palavra: uma ocasião feliz em que nos lançamos na sorte surpreendente e inesperada do jogo quotidiano!
1 Antonio Cicero, “Guardar – Poemas escolhidos”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1996, p. 337.
2 Santo Agostinho, Confissões, Livro X, VIII, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000, p. 453.