"Quem vê caras, não vê corações". E quem nem caras vê?

"A Pandemia deixou-nos a viver sob o reinado do olhar. De máscara, temos de "abrir o olho" e "ficar de olho", numa desconfiança vigilante."


"Os olhos são o espelho da alma". Esta é das primeiras sentenças que um estudante de latim decora. Antes mesmo de saber declinar "rosa, rasae" (e outras matemáticas desta ordem), já profere sentencioso: Oculi speculum animae sunt.

A Pandemia deixou-nos a viver sob o reinado do olhar. De máscara, temos de "abrir o olho" e "ficar de olho", numa desconfiança vigilante. (Para onde vão as mãos que nos podem contaminar com o que não podemos ver a "olho nu"?) As pessoas só com meio rosto ficam estranhas. Tapada a boca pela máscara, o "riso amarelo" foi de férias, o "riso sarcástico", talvez ainda se salve, mas há muitas expressões que não vêm à boca de cena, pois ficam tapadas pela cortina cirúrgica. Resta-nos expressar tudo com um olhar (ainda ando em ensaios). Ao nosso amor, a quem por fidelidade podemos "fazer olhinhos", por estes dias, é também das poucas pessoas a quem podemos mostrar a cara toda. Não é muito justo! Na rua, há olhos inócuos e olhares demasiado expressivos! (Temo andar entre os últimos!) Já me assustei com certos olhos, que, de tão arregalados, lembram as pinturas Margaret Keane.

Há quem queira que tudo isto passe "num piscar de olhos". Não me conto entre estes. Até porque esta expressão — voltemos ao latim: in ictu oculi — lembra-me um notável quadro de Valdez Leal, que se pode contemplar em Sevilha. Nele pode ver-se um esqueleto, carregando um féretro e a apagar uma vela, e recordando, assim, que tudo se acaba "num piscar de olhos" (curiosamente, o quadro está pendurado na igreja do Hospital da Caridade). Ecos do exagero barroco que a sensibilidade moderna afasta da vista. Podem considerar esta obra macabra, o que é legítimo, pois resume a tragédia humana, mas permitam-me que nela encontre certos traços de humor. Não só porque, como bem constatou um amigo meu, a caveira está sempre a sorrir, como se a morte fosse divertida; mas sobretudo porque não posso deixar de lembrar que me demorei na observação daquele quadro, ao ponto de o velho guardião da igreja me vir instruir: "olhe que tem mais quadros (bonitos) para a frente". Há de facto, sempre, outros quadros adiante e, por ventura, aquele ancião (mayor) tinha razão: não vale a pena ater-me a um só "piscar de olho". Não tenho pressa que tudo passe, e usar máscara tem as suas virtudes.


 
 
 
 
 
 
 
 
 

Pousar uma máscara cirúrgica (ou outra mais criativa) sobre a nossa máscara (a nossa persona) alivia esta, pois podemos agora rir desbragadamente à beleza circulante, a um tombo alheio e a outras coisas de que a educação nos costuma inibir.

É possível sorrir com um olhar, não duvidamos -- Os olhos são o espelho da alma, mas espelham menos com a boca tapada (ou assim parece). Enfim, termino com uma nota otimista. Sobra por estes dias (vacilando entre tristes e criativos, talvez estes causados por aqueles) matéria de espanto, o mundo como eterna novidade e surpresa. Vai-se à rua com o olhar de um Cabral a descobrir novas rotas, por desvios, enganos e acasos, vendo aquilo por que já se havia passado com outras vistas.

​Imagino que aquelas pessoas a quem "nada espanta" andem agora, e finalmente, de "boca aberta", salvas do ridículo, apenas pela máscara.

 

"​Morrem mais cedo aqueles diálogos de quase conclusão, que nos fazem perdurar numa rua fria naquela dança em que se diz "só mais uma coisinha"."

 

​3. Presos a dois curtos dedos de conversa — assim estivemos depois de vermos um filme de Buñel, O Anjo Exterminador (1962). Sem revelar muito a quem ainda não foi tomado por este filme, trata-se de um grupo de convivas impedidos de sair de casa depois de um jantar, por uma espécie de maldição, ou algo desta ordem. Para os ilustres leitores não será difícil imaginar tal confinamento doméstico, por isso concentro-me noutro aspeto, na dificuldade de nos apartarmos no fim de certas conversas, ficando como que presos a mais dois dedos de conversa. Estes momentos de convívio na despedida, pelo seu encanto, costumam ser demorados. Todavia, em dias em que uma saída é um ato heroico, bom, mas stressante, que exige preparação e cuidados de estranheza para com tudo o que encontramos, pessoas e objetos, talvez pelo cálculo de distâncias e proximidades morrem mais cedo aqueles diálogos de quase conclusão, que nos fazem perdurar numa rua fria naquela dança em que se diz "só mais uma coisinha". Neste tempo, parece mais difícil entregarmo-nos, confortavelmente, a mais dois dedos de conversa.​

Rui Rêgo

Investigador Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), desenvolve a sua investigação de doutoramento em ética e política no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CFUL). Integra inúmeras associações académicas e civis, tendo sido anteriormente Investigador no CLEPUL — Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do IECCPMA — Instituto Europeu Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes

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