Filipe Cabeçadas: “tudo isto parte da beleza que me rodeia. Tento reciclar essa beleza ao criar música, na esperança de lhe fazer justiça”

​Compositor, multi-instrumentista e produtor algarvio, passou por diversos tipos de projectos a nível musical. Este ano lança o seu primeiro álbum, depois de 20 anos de carreira. Conhecedor e viciado neste mundo da música, quer continuar por cá e dar mais um passo com um trabalho a solo. Falamos de Filipe Cabeçadas, com quem estivemos à conversa.

Andando 20 anos para trás, começo por perguntar-te: o que te atraiu neste mundo da música?
Há 20 anos, as inseguranças e rebeldias típicas da adolescência eram constantes e impunha-se a necessidade de identificação com uma força ou entidade exterior, que pudesse, de certa forma, apaziguar ou acompanhar os pensamentos, desejos ou frustrações deste jovem. A música foi onde encontrei o conforto, a casa, a forma de expressão.

​Quando entendeste que gostarias de ser músico, decidiste investir na tua formação?
Nunca quis ser músico. Era um modo de estar ingénuo apenas aliado a uma arte. A formação foi-me incutida pelo lado familiar e resisti bastante no Conservatório. Não me identificava, e foram seis anos duros mas que me deram bases muito sólidas para todo o percurso até hoje. Mais tarde, licenciei-me em Estudos Artísticos na Universidade do Algarve, para complementar algumas lacunas no campo das artes. Aí, inevitavelmente, a forma de lidar com a música mudou completamente. Depois, escolhi rumar a Lisboa e fazer uma Pós-graduação em Artes Musicais e Tecnologias da Música, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH). Sabia que havia muito a aprender no campo das tecnologias aplicadas à música e dei mais um pulo pessoal considerável ao concluir essa experiência. Em suma, esses são os três momentos de mais intensidade na minha formação musical.

Duas décadas de carreira dão, sem dúvida, alguma bagagem. Estiveste envolvido em algumas bandas. Recorda-nos um pouco dos míticos MindLock.
Os Mindlock têm lugar especial no meu percurso porque foi onde tudo começou. Lembro-me de ter levado o nome ao ensaio para ver o que os restantes membros achavam. E assim foi. Compus os meus primeiros temas e o sentimento de realização era grande. Poderes tocar e espalhar as tuas inquietações e revoltas era algo incrível. Depois, gravares dois discos, percorreres pela primeira vez o teu país aos 20 anos e tocares em salas míticas com bandas grandes. Foi, além de uma grande escola, uma realização de jovem.

​Desses tempos de Metal até os dias de hoje, muitas foram as experiências e os artistas com quem trabalhaste, os géneros que tocaste, os projetos em que estiveste envolvido. Existe algum que guardes na memória com especial carinho?
É uma pergunta injusta pois todos os grupos e pessoas com quem desenvolvi trabalhos fizeram de mim o que sou hoje. Guardo algum extra-carinho pelos Melomeno-Rítmica, por todas as razões e mais algumas. Também trago comigo os meus tempos nos oLUDO, onde tive a possibilidade de expandir novos conceitos e abordagens musicais.

O tempo na estrada ocupa uma parte crucial da vida de um músico. Essa parte, enquanto performer, atrai-te ou acaba por ser demasiado cansativo para ti? Fala-nos um pouco dessa rotina.
A estrada é a tua companheira, amiga e confidente quando não estás em casa. Confias nela para cuidar de ti. Com o tempo, desenvolve se uma relação de amor e de cumplicidade. Quando não estás na estrada, ela está contigo, e quando estás com ela, é a tua casa que te chama. É uma relação de necessidade com vontade misturada. Vivo para me fazer à estrada e tocar para gente estranha, porque sei que irei voltar a casa sempre no final.

Tal como já referimos, saltaste entre géneros musicais. Do Metal de Mindlock para o Pop de Diogo Piçarra, com quem atualmente trabalhas, vai alguma diferença. És um músico camaleônico?
É verdade que até agora tenho tido uma linha de som diversificada, e talvez seja em parte por ter uma formação melódica e um espírito rebelde. Sempre vivi no complemento entre extremos. No equilíbrio da harmonia e a força do empurrão. Nesse limbo, construí-me. E sou produto de tempos ainda muito modernistas em que somos vários em apenas um. Apercebo me que não gosto de rotinas musicais e a minha atitude está tanto numa letra de Mindlock como num arranjo para uma música do Diogo. Não há uma fórmula. Apenas uma visão, um objetivo e uma mensagem específica em vários cenários.

Com este teu trabalho a solo, em que géneros consegues referenciar a tua criação?
Todos os géneros influenciam-me no presente. Certamente estão presentes laivos subconscientes de todos os grupos, músicos e músicas com que partilhei a criação artística até agora. Gosto de me ver como independente. Tenho um espírito rock and roll de “stick it to the man”, mas, ao final do dia, gosto de ter uma flor para dar a alguém. Portanto, um género carregado e despreocupado onde se reflete e se dança ao som do Spotify em modo aleatório.

Passou um ano desde o lançamento do teu primeiro single, Bring Back the Man. Que feedback tens tido?
Esse tema, por ter sido o primeiro a apresentar-me em nome próprio, acaba por ser muito especial tanto para mim como para quem o ouve. Foi uma surpresa para muita gente e acabei por ser bem surpreendido em geral. Segundo algumas opiniões, a minha voz está desafinada e devia ter tido mais cuidado. Mas o meu espírito da altura dizia-me que tinha que ser assim. Então todo o tema é totalmente autêntico: sabia dos riscos e das balas que me poderiam lançar. Estava pronto para tudo e acabou por ser tudo como queria. Passado um ano, lanço um disco. Resposta dada.

“20.1” estará nas ruas neste Novembro. Quais são as expectativas relativamente ao teu primeiro álbum?
Nenhumas. Aprendi a levar as coisas com o seu ritmo natural. Fiz este disco para mim. É uma auto-prenda por estes anos e também uma homenagem a todos os que fazem ou fizeram parte do percurso. Quero apenas que as pessoas saibam que o disco existe. Isso chega-me.

E para os mais curiosos, o que podes adiantar sobre “20.1”?
São oito temas escritos no espaço de um ano e sem um fio condutor explícito. Há a típica saudade, a relação amor versus distância, a procura da verdade, a noção de céu e inferno, o espírito do viajante, a crítica social, uma pequena homenagem ao cinema ou até uma confissão e conversa com os que já não estão entre nós. Tudo isto parte da beleza que me rodeia. Tento reciclar essa beleza ao criar música, na esperança de lhe fazer justiça.

És tu que escreves e compões as músicas deste álbum? Acreditas ser importante para ti enquanto músico ter essa capacidade de criar e não apenas de interpretar?
Eu escrevo, componho e toco praticamente todos os instrumentos neste disco. Há espaço e formas para tudo, mas a minha pessoa e os meus princípios artísticos dizem-me que só assim o nível de autenticidade é verdadeiramente alcançável. De qualquer forma, tenho colegas que o fazem de outra forma e há sempre respeito e admiração mútua.

Desde o momento em que começaste a ter ideias, a escrevinhar as letras e a cantarolar as primeiras melodias, até ao momento em que tens o teu CD nas mãos, quanto tempo passou?
A ideia inicial surgiu antes do verão de 2017. Durante essa altura, vivi coisas fortes emocionalmente e percebi que tinha aí o empurrão dado pela vida. Tinha que o aproveitar de uma forma positiva. Com bastante trabalho de introspecção e criação, apercebi-me de que tinha um disco pronto em Junho deste ano.

Nesse tempo, como foi conciliar o teu trabalho enquanto baterista e autor? Onde arranjavas tempo para criar?
Foi relativamente fácil conciliar os vários papéis porque o baterista descansa e o autor está sempre presente. Quando o músico freelancer descansava de um concerto, mesmo em São Paulo de Oleiros, depois de 400 quilómetros, aí o autor revelava-se e gravava uma melodia para o telefone. É um estado constante.

Sentes que durante a construção do álbum foste crescendo enquanto artista?
Há sempre crescimento em qualquer processo artístico. No início estamos num estado de antecipação, vontade, concentração, dúvidas. No final do processo, sentimos que crescemos por vezes onde menos esperamos. É sempre um trabalho de auto-descoberta e crescimento constante.

Agora que o álbum está concluído e pronto para ser apresentado, qual será a tua maior dificuldade enquanto artista a solo?
Honestamente, creio em desafios e não em dificuldades. Ao desafiar-me a fazer este disco, ultrapassei algumas barreiras até com bastante naturalidade. Mas sou humilde o suficiente para saber o meu lugar. Não sinto dificuldades específicas neste momento.

Tens objectivos de carreira definidos? Onde gostarias de estar daqui a 20 anos?
Já os tive e conquistei a seu tempo. Sei que ter uma carreira a solo sustentada em Portugal requer imensos fatores, os quais não tenho ou não estou disponível para integrar na minha vida. Portanto, apenas tenho o objetivo de fazer canções para a realidade onde me insiro e, se assim o desejarem, de enriquecer a banda sonora da vida de quem quiser. Daqui a 20 anos espero estar feliz e realizado como hoje, e espero também estar a compor mais um disco ou a tocar algures para quem me quiser ouvir.

Não indo tão além no futuro e aproveitando o que está mais perto: estás a preparar-te para dar o teu primeiro concerto a solo. Conta-nos: quando e onde acontecerá esse evento?
É o primeiro concerto. O que marcará o início deste caminho. O lançamento do disco será dia 24 de Novembro no salão onde toquei pela primeira vez - o Club Farense, em Faro.

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