Cláudia Guerreiro: “a Música pode fazer-te pensar sem ser direta; pode fazer-te sentir e só sentir pode ser um protesto"

Formados em 2003 por Cláudia Guerreiro, André Henriques, Hélio Morais e Pedro Geraldes, os Linda Martini vieram reafirmar a cena punk e pós-rock portuguesa. Volvidas quase duas décadas desde esse momento, o pesar do tempo não se acusa nem manifesta no vigor que os mantém. A atestá-lo, este ano foram lançados ‘Taxonomia’, ‘E Não Sobrou Ninguém’, e ‘Horário de Verão’ – três temas-prenúncio do que aí vem, e apresentados na noite de ontem, dia 20 de novembro, no palco da Sala Morcego do Festival *SIGA*, em Faro.


Em entrevista à Make It Happen, Cláudia Guerreiro, vocalista e baixista dos Linda Martini, fala-nos sobre o imaginário e as motivações que se escondem não só por detrás destes três temas, como da banda.

 

Make It Happen (MIH) Parece haver no vosso recente single 'Taxonomia' uma relação lírica com os meses de confinamento…

Cláudia Guerreiro (CG) Quem escreve as letras é o André, eu funciono sempre muito mais com a parte musical. No fundo, não há nada de específico na letra que não tenha a ver com as outras pessoas: passámos todos pelo mesmo. As letras, como são feitas mais para o fim, acabaram por coincidir com o início da pandemia: nós começámos a fazer o disco em 2019; em fevereiro de 2020 estivemos em residência, em Ílhavo, onde fizemos a pré-produção; ficámos com o disco já quase todo definido, mas ainda sem letras; tínhamos bocados para uma ou duas. Saímos de Ílhavo no fim de fevereiro, e o país fechou. A partir daí foi difícil fugir àquilo que foi o nosso dia a dia – que foi meu e de toda a gente. Naturalmente, as músicas acabaram por cair muito neste tema porque era o tema que estava todos os dias à nossa frente, todos os dias no telejornal. Não saíamos de casa, não havia muito mais sobre o que falar. Foi quase inevitável.


MIH – Já o tema 'Não Sobrou Ninguém' tem como mote o poema do alemão Martin Niemöller sobre a ascensão do Nacional Socialismo na Alemanha, que nos fala sobre os séculos de atrocidades, de discriminação e injustiça para com “o Outro” – o de diferente etnia, religião, ou género, e sobre a nossa indiferença para com tudo isso.

 

(E não sobrou ninguém
primeiro levaram os comunistas
mas não me importei com isso
eu não era comunista;
em seguida levaram os sociais-democratas
mas não me importei com isso
eu também não era social-democrata;
depois levaram os judeus
mas como eu não era judeu
não me importei com isso;
depois levaram os sindicalistas
mas não me importei com isso
porque eu não era sindicalista;
depois levaram os católicos
mas como não era católico
também não me importei;
agora estão me levando
mas já é tarde
não há ninguém para
se importar com isso." )

É-vos fulcral este condão ou conotação política na música?


CG – Eu diria que estas músicas que temos estado a pôr cá fora são carregam talvez uma mensagem um pouco mais direta do que aquelas que nós costumávamos assumir. E, se calhar, porque vivemos uma altura mais extrema.


MIH – Sentes que é o tempo que o pede? Que… ser-se direto é agora mais urgente?


CG - Sinto que é mais urgente e que também a necessidade é maior. Está tudo tão presente que se torna cada vez mais inevitável. Parece que é tudo uma questão de inevitabilidade, à semelhança da ‘Taxonomia’. Passámos pelas eleições, por ver uma mudança que acontece há já algum tempo, mas que se tem tornado muito evidente do ano passado para cá, uma mudança de direção das coisas. É uma direção que a nós particularmente nos está a custar a ver e a ter de vivenciar. Temos todos de viver com ela, vamos fazendo o possível para a contrariar, mas não há muito por fugir: vivemos todos nesta sociedade, e estas coisas impõem-se-nos. Neste último ano e meio, e em geral quando a sociedade está fragilizada, todas estas diferenças acabam por saltar mais à vista e na pele – porque elas sentem-se, mesmo. Não é só visual – é mesmo efetivo.


MIH – Achas que pode ser pela música esse “contrariar” do rumo? De reagir ou protestar?


CG – Eu acho que a Arte pode ter um papel de protesto, mas não acho que seja uma função da Arte ter um papel de protesto. É sempre difícil para mim falar da Música enquanto Arte, porque as artes são todas tão diferentes, e a Música é uma arte muito mais direta e muito mais ‘pop’. Pode não ser uma coisa tão introspetiva, mas ela também é muito abrangente, portanto, depende muito do estilo de música do qual estamos a falar. Ou seja, eu acho que ela pode ter esse papel ou não. Ela pode fazer-te pensar sem ser direta; pode fazer-te sentir e só sentir pode ser um protesto. Não acho que o protesto tenha de ser sempre “pôr a coisa cá fora”. Pode só fazer-te sentir coisas; não estar alheado às coisas; continuar a funcionar enquanto humano, pessoa que sente; fazer com que não te afastes de ti enquanto humano.


MIH – Noutras letras vossas, surgem apontamentos e referências muito quotidianas e geograficamente circunscritas, como por exemplo a 'Unicórnio de Sta. Engrácia', que levará um lisboeta a sentir-se em casa. É uma preocupação vossa, estabelecer esta proximidade com o público? Ou não deve haver essa interferência na composição?

CG – Não é uma preocupação, até porque, no caso da ‘Elevador de Santa Engrácia’, há proximidade com o público de Lisboa, mas com o de Faro já não. No fundo, acho que é muito natural para o André falar daquilo que lhe é próximo. Ou seja, isto não acontece no sentido de nos aproximarmos ninguém, mas sim no sentido de ser assim porque é assim que somos: são as preocupações que temos e que são as coisas que preocupam o André e que acabam por ser um reflexo daquilo que somos as preocupações de todos nós. Até porque se estamos juntos numa banda há quase 20 anos, então por alguma razão será: é por termos algumas coisas em comum. Por isso, é ele que escreve, mas nada do que ele escreva é algo que está fora daquilo que nós sentimos e partilhamos. O André tem a capacidade de escrever sobre coisas com as quais todos nós nos relacionamos, de pô-las numa maneira que nos emociona e que consegue tirar coisas mais profundas de questões, por vezes, um pouco mais normais e quotidianas.

MIH – Depois de algum tempo sem vos ouvir, o público recebe agora estes três temas. Como é que tem sido o feedback?


CG –Nós temos sempre a espectativa de que as pessoas gostem e digam “Ahh! Agora é que vai ser; agora é que isto vai rebentar!” Entretanto, com o passar dos anos, já percebemos que isso é um tipo de coisa que, em Portugal, não acontece a uma banda como Linda Martini. Então, não faz muito sentido esperá-lo. Mas, temos tido a sorte de ter muita gente a gostar, a seguir-nos, a entusiasmar-se e a emocionar-se mesmo com as nossas músicas, e isso aconteceu também com estes três últimos temas, e tem também acontecido ao vivo –temos tido alguns concertos, e as pessoas reagem mesmo muito bem a estas três músicas, o que é um bom indício para o que aí virá…


MIH – Como se dá o vosso processo de composição?


CG A composição é muito intuitiva. Nós somos músicos, mas não clássicos ou tradicionais. Academicamente não somos músicos – não temos formação académica. Portanto, chegamos e começamos a fazer coisas uns com os outros. Por vezes, levamos coisas feitas de casa, mas depois é tudo construído uns com os outros. Uns chegam com uma parte, o outro lembra-se de experimentar qualquer coisa, e aquilo constrói-se ali, no momento.
Nós já nos conhecemos há muito tempo, já fazemos música há muito tempo, e, por vezes, temos até uma maneira já quase viciada de fazer as coisas, por mais que tentemos fazer diferente, por mais que tentemos fugir. Mas essa maneira funciona muito bem. Nós chegamos, vamos compondo, vamos adicionando peças, começamos por definir e fechar a estrutura com essas partes. Por fim, pomos a voz (o texto), e com esse texto é que vamos percebendo se a estrutura precisa de alguma adaptação para se ajustar ao que temos, se a letra que o André traz acaba por ser muita e, por isso, precisamos de acrescentar música ou de cortar na letra. Passa assim por algumas fases, e depois é andar para trás e para a frente até apertar as agulhas todas.

MIH – Já lá vão quase 20 anos de Linda Martini, qual é a “fórmula” para essa continuidade?

CG – Há sempre conflitos, é como num casamento. É a questão de saber se quero continuar casada ou não; de saber que, por vezes, temos de ceder. Há uma gestão de quase 20 anos, há alturas em que corre melhor, outras em que corre pior. A altura do confinamento foi esquisita porque, ao contrário do que acontece num casamento, nós não estivemos na mesma casa – esteve cada um em sua casa…


MIH – Antes destes três singles, o vosso último álbum, homónimo, foi lançado em 2018. O que andaram a fazer durante este tempo?

CG Começámos a pensar em músicas para este disco mal gravámos o anterior. Quando fomos para a pré-produção, no início do ano passado, já tínhamos muita coisa. Infelizmente, tudo fechou, e por isso não nos valeu de nada ter as coisas antes de tempo, porque ainda estão na gaveta. Mas… já conseguimos pôr três músicas cá fora. Aliás, o nosso plano inicial não era fazê-lo, mas fazê-lo foi uma maneira de nos sentirmos vivos e de não deixar as músicas na gaveta. E isso é uma coisa muito chata, a pessoa fazer as músicas e depois deixá-las a morrer sozinhas… Já saíram estas três, e estamos agora a preparar-nos para pôr outras cá fora.


MIH – Qual é o teu tipo de espaço predileto para atuar? Preferes uma plateia enorme ou algo mais…próximo ao público?

CG – Todos os concertos são bons. Os concertos mais esquisitos são aqueles em que as pessoas estão sentadas e são controladas. Por oposição, os melhores são aqueles em que as pessoas estão de pé, na maior confusão. E a maior confusão é sempre em sítios mais pequenos. É onde as pessoas pulam para cima umas das outras – algo que agora não dá muito jeito, mas que em tempos normais acontecia. Em termos de condições, esses são também os sítios mais difíceis. Nos outros, como há mais dinheiro para tudo, há outro material. Mas, clubes e espaços mais pequenos acabam por dar os concertos mais memoráveis.


MIH – Planos para o futuro?

CG – Neste momento, era só termos concertos. Acho que o melhor plano para o futuro era poder voltar ao passado. Estamos sempre a querer ir para a frente, mas eu só queria que as coisas voltassem a ser como eram. Não é andar para trás, mas, se não der para ser melhor, então que pelo menos voltasse a ser como era.


FONTE Make It Happen FOTOGRAFIA Alexandra Farinho / Epopeia Brands™
Anterior
Anterior

Diana Berbedo: “Ao fazer teatro, conhecemo-nos mais como seres humanos (…); questionamos o mundo”

Próximo
Próximo

Dela Marmy: “Quando acontecer alguma coisa que nos iniba o tempo, acontece e pronto. Se calhar, temos de abrandar”