Diana Berbedo: “Ao fazer teatro, conhecemo-nos mais como seres humanos (…); questionamos o mundo”
Entrevista a Diana Berbedo e Miguel Pessoa, Diretores Artísticos da Primeira Edição do MOMI – Festival Internacional de Teatro Físico, que arranca em Faro já amanhã, dia 26, estendendo-se até domingo, dia 28.
São Companhias e artistas oriundos de Portugal, Espanha, França, República Checa, Japão, Argentina, que chegam ao MOMI esfumando fronteiras para unir, por via de uma linguagem que lhes é comum – o Teatro Físico, intersetando as variadas vertentes que comportam, como o Mimo, a Pantonmima, a Dança-Teatro, magia e circo.
A par dos espetáculos, realizam-se ainda, entre 20 e 28 de outubro, quatro workshops orientados por alguns dos participantes do festival.
O MOMI vai passar por vários espaços da cidade ligados ao Teatro e às Artes, como o Teatro Lethes, o Teatro das Figuras, o Gimnásio Clube de Faro, a Casa das Virtudes, a Universidade do Algarve, o Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), entre outros, e conta com o apoio da Direção-Geral das Artes, da Direção Regional de Cultura do Algarve, do Município de Faro, Iberescena, Acción Cultural Española e Região de Turismo do Algarve.
O Festival tem como direção artística de Diana Bernedo e Miguel Martins Pessoa – dupla fundadora do Coletivo JAT – Janela Aberta Teatro, uma estrutura artística criada em 2017 e dedicada à criação de espetáculos, à pesquisa teatral, à formação de atores e ao teatro comunitário - projetos que se desenvolvem sob a premissa da Arte e da intervenção artística como mecanismos de transformação social. Os dois projetos de Teatro Comunitário ilustram-no: “Quarteira Fora da Caixa”, e “Teatro de Vizinhes”, em Faro, ao serem espaços de diálogo, de criação e de inclusão – como a própria designação, numa apologia ao género neutro, indicia.
Em conversa com a Make It Happen, Diana e Miguel falam-nos sobre o que os moveu a criar o JAT e a concretizar o MOMI, e ainda sobre o conceito e as especificidades do Teatro Físico.
MIH (Make It Happen) – Como é que nasceu o JAT?
MP (Miguel Pessoa) – O Janela Aberta Teatro nasceu do desejo de criar espetáculos de Teatro Físico (e de Teatro, em geral) em Faro. Partiu de ideia minha e da Diana que somos os dois diretores artísticos. Há muito tempo que fazemos Teatro – temos um percurso em Portugal, em Espanha e noutros países por onde passámos e tivemos formação. Especializámo-nos em Teatro Físico e viemos viver para o Algarve (eu sou de cá e a Diana é do País Basco). Decidimos então formar uma Companhia de teatro porque pensámos que seria uma boa forma de aglutinar num só projeto todas as atividades que pretendíamos desenvolver: atividades de criação, espetáculos, projetos de teatro comunitário e de formação teatral – temos várias oficinas de Teatro Físico e formação de atores. Temos ainda workshops de curta duração, mas o “forte” da nossa formação são os workshops regulares que duram o ano letivo e que por isso são mais completos.
MIH – Como é que tem sido desenvolvido o teatro comunitário?
DB (Diana Bernedo) – Nos projetos de teatro comunitário, os participantes são pessoas da comunidade, vindas de diversas cidades, sem formação teatral, que aprendem, criam, expressam-se, cantam, interpretam, falam, dialogam, questionam-se - juntos. Temos atualmente dois grupos: um em Quarteira, o “Quarteira Fora da caixa”, e em Faro o “Teatro de Vizinhes”. Cada grupo tem depois um espetáculo, e os espetáculos falam essencialmente de problemáticas do território – e da memória do território. Pouco a pouco, vai-se construindo uma identidade própria a cada grupo. Nós damos uma espécie de formação: partilhamos com eles todos os nossos saberes, para que aprendam e cresçam em palco e tenham muitas mais ferramentas na hora de manifestar as mensagens através dos espetáculos. Cada grupo tem entre 30 e 40 membros, e vão todos a palco nos espetáculos.
MIH – Pegando no nome do grupo de Teatro Comunitário de Quarteira, pergunto-vos: qual a importância de fazermos e vivermos 'fora da caixa'?
MS – No fundo, a nossa vida é um bocadinho fora da caixa. A importância de desenvolvermos estes projetos de teatro comunitário surge da necessidade que nós sentimos de contribuir para que vejamos as pessoas felizes. De contribuir para que as pessoas não percam a imaginação, não percam a criatividade, e alimentem esse espírito artístico e de alegria. No fundo, para que possam sair um bocadinho da sua rotina, do seu dia-a-dia, que talvez seja mais cinzento. E é também uma forma de usar a Arte – o Teatro, neste caso, para expressar ideias e questões que todos temos na nossa existência.
DB – O Teatro é o espelho do mundo, o espelho dos seres humanos, o espelho da natureza. Então, ao fazer teatro, nós conhecemo-nos mais como seres humanos, conhecemos as coisas que nos rodeiam; questionamos o mundo para o poder viver melhor e transformar o nosso dia-a-dia.
MIH – Atendendo agora no conceito de Teatro Físico, enquanto género que envolve várias linguagens, como a performance, a dança e a música. Porquê a aposta neste tipo de Teatro?
MP – Nós somos formados em Teatro Físico: a Diana estudou Teatro, em Espanha, na vertente Física, (Teatro do Gesto). Na altura, a meio do curso este divide-se em dois ramos: texto e gestual. E eu formei-me em Teatro Físico e em Mimo, em Madrid. Portanto, o nosso interesse pelo Teatro Físico surge também da necessidade de não estarmos quietos e de fazer com que a nossa arte não seja puramente intelectual, narrativa, literária: que seja também um corpo que fala, um corpo que mexe, um corpo que está adormecido e que se ativa e se desperta do quotidiano contemporâneo.
MIH – Que particularidades e preocupações são endógenas ao Teatro Físico? Quais as preocupações que subjazem à montagem de uma peça à luz do Teatro Físico, que não existiriam no Teatro convencional?
DB – Nós nascemos sem saber falar. Somos animais que se mexem: temos uma comunicação física desde que existimos, desde que nos mexemos; no fundo, desde que somos semente. O ator de Teatro Físico procura outro corpo que é uma metáfora do mundo e que se recria em diferentes manifestações ou linguagens, que podem passar pela máscara, pelo mimo, pela performance ou pela dança. Há uma relação com o espectador mais visceral, pela própria utilização extra-quotidiana do corpo, que é já um corpo diferente –capaz de converter-se em qualquer coisa.
Muitas vezes, o Teatro Físico parte de fatores ou elementos que não são o próprio texto. No teatro convencional, o público pensa que a peça se dá a partir de um texto, que o intérprete tem que ter um texto obrigatoriamente. O Teatro Físico não tem que partir daí. Pode partir, mas não tem de. Cria-se através de narrativas que são inspiradas em mecanismos muito diferentes. Cada Companhia tem o seu mecanismo e o seu funcionamento de criação, mas os vários elementos vão-se construindo à medida que a peça vai tomando forma. Depois, há sempre uma análise dramatúrgica para que todas as peças encaixem: a cenografia, a dramaturgia musical, a dramaturgia do vestuário, a do movimento. O espetáculo vai ser apresentado ao público e tem de ter uma mensagem clara, o que exige um forte processo de análise da criação.
MIH – Essa mensagem pode ser direta, mas… parece-me que, pelo Teatro Físico, não nos é tão dada – como seria, talvez, por uma peça onde imperasse a palavra. É uma ideia subjetiva, mas, sinto que, pelo Teatro Físico, essa mensagem tende a ser mais “mística”, ou aberta, digamos assim…
DB – De facto, a comunicação através de um espetáculo de Teatro Físico é muito mais visceral: apela a um sistema sensorial no público muito mais profundo, e é, muitas vezes, uma recriação; uma transposição poética do mundo. Isso permite que o espectador repare, de outra maneira, em tudo o que tem à sua volta. Há outra abertura de canais, de pensamento crítico e de criativa; é uma provocação muito maior aos sentidos.
MP – Atenção: o Teatro Físico não nega o texto. Dentro de um espetáculo de Teatro Físico, ele pode aparecer, só que não tem o protagonismo que tem no teatro convencional. Nesse, a palavra assume o ponto principal da transmissão de uma mensagem; neste caso, os protagonistas são o corpo, o movimento – apesar de a palavra (texto) também poder existir.
MIH – Entrando agora no MOMI – Festival Internacional de Teatro Físico, pergunto-vos como é que nasceu a ideia deste festival? O que é que vos motivou e moveu a criar em Faro esta primeira edição?
MP – Começámos a delimitar as ideias do festival há cerca de 2 anos e há cerca de 1 ano e meio tomámos a decisão de avançar. Porque tinha de ser uma decisão pensada e madura, e não ‘do pé para a mão’. Apareceu a Pandemia, e tivemos de pensar bem num momento ideal para realizar o Festival. E calhou neste momento: vai finalmente sair à luz este fim de semana, e estamos muito emocionados para saber o que vai acontecer!
Quando chegámos a Faro e montámos a Companhia, o Teatro Físico era algo que as pessoas conheciam, mas não tinham esse conhecimento bem definido. Quando começámos a dar formações e a apresentar espetáculos de Teatro Físico, as pessoas reconheciam e diziam: “eu já vi qualquer coisa parecida a isto” ou “isto soa-me a qualquer coisa...”. É como aquela frase que se costuma dizer: “uma imagem vale mais que mil palavras”; neste caso, “um gesto vale mais que mil palavras”.
Quando surgiu a ideia, a nossa preocupação era trazer Companhias e artistas nacionais e internacionais que falassem a mesma linguagem que nós. Trazer uma programação muito variada, para permitir que o público conheça outras e novas linguagens. Até porque dentro do Teatro Físico há vários estilos ou géneros, mas todos eles se tocam por causa desta componente física do ator e da Companhia: a linguagem e a expressão gestual. É essa a beleza desta programação: desde sexta-feira à noite até domingo ao fim do dia, as pessoas vão usufruir de teatro através de espetáculos muito variados.
MIH – O Festival começa já no próximo dia 26, e vai até dia 28, contando com Companhias e artistas de sete países: “Solitudes”, de Kulunka Teatro (Espanha), “Le Voisin”, de Benoît Turjman (França), “El alquimista del sonido”, de Fausto Ansaldi (Argentina), e “Balada para una noche de luna Lena”, de Plató Physical Theater Bcn (Espanha/República Checa). Como é que se deu o diálogo e a seleção destes artistas?
DB – Deu-se de vários processos. Um deles foi pensar em Companhias que já tivéssemos visto noutros festivais internacionais e das quais tenhamos gostado, e começámos a ter comunicação com elas, a ver disponibilidade, definir cachet e outras questões logísticas.
Decidimos fazer também uma open call (chamada aberta), através da qual recebemos 150 propostas de sete países. Algumas Companhias às quais tínhamos proposto não podiam vir e fomos complementando a programação para que fosse variada e acessível a todos os públicos, abarcando as diferentes linguagens do Teatro Físico.
MIH – O Festival abre com a peça “Solitudes”, que tem na produção a Kulunka Teatro, do País Basco, e que se serve do humor para imergir em temas como a solidão e a falta de comunicação que encontramos entre os membros de tantas famílias. Sentem que o humor pode ser uma estratégia para refletirmos, ou mesmo…de exorcizarmos estes temas que nos pesam no íntimo?
MP – O humor permite-nos aligeirar alguns temas duros e difíceis. Muitas vezes, vemos um espetáculo de humor, mas saímos de lá com uma lagriminha no olho…
Eu diria que, mais do que o humor, também a poesia o permite. Porque a poesia das imagens, da metáfora, a transposição teatral, é o que nos permite também no Teatro e na Arte poder retratar temas fortes e dolorosos sem termos de assistir a eles mesmos. Através da metáfora e da poesia, conseguimos tocar em aspetos da mente e do espírito do espectador que, com uma narrativa mais naturalista, seria talvez um pouco violento. O “Solitudes” é muito especial, porque as máscaras são silenciosas e através deste silêncio dá-se espaço ao espectador para refletir, para criar ele próprio um texto interno na sua cabeça e emocionar-se de uma forma transcendental. Este espetáculo ganhou o prémio ‘Max de las Artes Escénicas´ – o maior prémio do Teatro em Espanha.
MIH – A par dos espetáculos, vão haver workshops. Em que temas ou vertentes se focam? A quem estiveram abertos?
DB – Já aconteceram dois, um deles de Dança/Teatro, e que teve lotação cheia. Está a acontecer um de Mimo para crianças, que termina hoje, dia 24. Por vezes, os workshops tendem a ter conteúdos mais direcionados para adultos, mas não nos podemos esquecer das nossas crianças…
O Mimo é uma Arte maior, que nasce da Mimesis. Quando somos pequenos, é através da Mimesis que aprendemos. Então, estas crianças estão a aprender, a criar pontos fixos e peças curtas em grupo. Têm uma capacidade de dramaturgia impressionante! É lindíssimo vê-los articular.
MP – Estes workshops foram abertos a quem se queria inscrever. Não havia seleção. A única seleção era a faixa etária, para mais de 14 anos, à exceção do workshop de Mimo, o qual foi mesmo direcionado a crianças e jovens. Houve muita adesão. As pessoas têm muita curiosidade em saber o que é o Teatro Físico, de aprender uma coisa nova, de se expressarem através do corpo. Procurámos criar um leque de workshops variados, aproveitando a presença de alguns artistas que cá vieram fazer espetáculos e que são também formadores.
MIH – A nível de públicos, há alguma peça direcionada para público específico, como por exemplo o infantil?
MP – Há espetáculos que são para maiores de 14 anos, como é o caso de “This is Not About Me”, que se dá no sábado, dia 27, e o “Becoming Ma”. São performances um pouco mais ‘fora da caixa’, pelo que é mais complexo o entender da mensagem, e daí esta faixa etária. Já a “Poyo Rojo”, dirige-se a maiores de 12 anos. Em compensação, há espetáculos para toda a família, como o varredor de marés, da Companhia farense Te-Atrito, que apresenta um espetáculo sobre a importância de cuidar do planeta.
Já o “WoooW”, de Nanco Caneca, é um espetáculo de magia, de mimo e circo – também direcionado para toda a família, e que conta com uma poesia lindíssima. O Nanco Caneca é um craque, e consegue tocar miúdos e graúdos.
Referir que “Becoming Ma” é um espetáculo que conta com uma programação dupla; este segundo vai ser o resultado de uma residência artística que está a acontecer durante esta semana no festival. Convidámos duas artistas que não se conheciam, Tania Garrido (Espanha) e Yuko Kominami (Japão). Elas vêm ambas da área da Dança e do Butoh, partilham esta linguagem comum, e, por isso, convidámo-las a conhecerem-se, a juntarem-se e a trabalharem uma peça, juntas, para depois apresentarem o working progress numa performance ao vivo, durante o Festival. Esta residência tem estado a decorrer, hoje é o terceiro dia.
Vamos ainda ter alguns momentos depois dos espetáculos, nos quais o público pode fazer perguntas aos artistas, aos atores e aos criadores. Além desses, acontecerá outro momento de encontro informal: uma festa no Gymnasium Clube de Faro, no sábado à noite (dia 27), em que o público pode estar a tomar um copo com os artistas e a conversar – um momento de partilha informal.
FONTE Make It Happen FOTOGRAFIA MOMI