Sérgio Pires: “Passo Forte é esta banda. Resume muito bem aquilo que nos une e a transição de Diabo na Cruz para SAL”

​Foi pouco depois da extinção de Diabo na Cruz, em 2019, que Sérgio Pires (voz e braguesa), João Pinheiro (bateria) e João Gil (baixo) começaram a edificar o projeto musical que viria a ser SAL. Ao renascer desta espécie de Fénix juntaram-se Vicente Santos, nas teclas, e Daniel Mestre, na guitarra. Mantendo a ode à música tradicional portuguesa como essência, mas distantes dos Diabo em matéria de liberdade e experimentação, os SAL percorrem agora os palcos de Sul a Norte para apresentar “Passo Forte”, álbum de estreia lançado no passado mês de novembro. O palco do Festival *SIGA*, em Faro, entrou nesse roteiro, e a Make It Happen acompanhou a noite.

​O céu era já todo breu na capital algarvia. De frente para a Ria, uma qualquer força sugava-nos para o interior da Sede da Associação Cultural e Recreativa de Músicos. Cedemos à força. Como quem saía da Sala Morcego em direção à *SIGA*, à direita abria-se uma porta pela qual atalhámos. Corredores adentro, descobria-se o camarim que acolhera os SAL na noite de 27 de novembro. Diante de nós uma mesa, e sobre ela uma cesta com romãs, peras, talvez maçãs (elementos fundamentais para o fruir das palavras, como adiante se verá). Em redor dessa mesa sentámo-nos com Sérgio Pires, João Gil, João Pinheiro e Vicente Santos, a partilhar o espaço e o momento que culminaram na espontânea discussão que abaixo se lê.

 

Make It Happen (MIH) – Foi o vosso primeiro concerto no Algarve?
Vicente Santos (VS) – O primeiro concerto da banda foi em Alte, no Festival Fusos, em junho. Na altura, queríamos rodar a banda, e chegou-nos o convite. Portanto, fomos batizados no Algarve, e o número de concertos que aqui demos, neste momento, está empatado com Lisboa.

MIH – Como é que SAL se cedeu?
João Gil (JG) – Tínhamos Diabo, deixámos de ter Diabo, mas não nos deixámos de ter uns aos outros e continuámos a fazer música, com SAL. Mantiveram-se alguns membros de Diabo – eu, o Sérgio, e o João, e juntaram-se outros – o Daniel e o Vicente.

MIH – Como não poderia deixar de ser, há muito de Diabo na Cruz em vocês, como seja, o core na música tradicional portuguesa. E de diferente, o que há?
Sérgio Pires (SP) – Parte dos músicos são os mesmos, pelo que seria até estranho se assim não fosse. Esse core vem da nossa história enquanto músicos, dos nossos gostos vêm de antes dos Diabo. Diabo na Cruz foi uma banda muito importante no seu tempo, tinha um propósito artístico muito claro, mas agora temos outras pessoas a compor. Não podemos negar aquilo que foi o nosso passado e o nosso legado enquanto músicos, mas, agora em SAL, o propósito é já outro.

JG – Quem procurar algo de Diabo, vai encontrar, mas… vai também descobrir uma coisa completamente nova.

João Pinheiro (JP) – Os SAL só existem porque houve uma tour em que reformulámos os Diabo na Cruz por imposição ou, se quisermos, por uma necessidade externa. De repente, percebemos que tínhamos ali uma formação que poderia gerar mais música, com mais felicidade e futuro – algo que Diabo na Cruz já não tinha.

SP – Nós já sabíamos que a banda ia acabar, naquela altura.

JP – Era uma tour de despedida. Fizemo-la, e apercebemo-nos de que não íamos parar como músicos. Portanto, é normal que esta banda não soe a outra coisa qualquer. Que não soe a reggae ou a disco sound… não vem de Sloppy Joe, de TV Rural, de You Can Win Charlie Brown ou dos Conjunto Evite – vem diretamente dos Diabo na Cruz.

MIH – A par desse core intemporal, sinto que há agora um certo tom mais experimentalista em SAL, manifestado, por exemplo, através do auto tune. O que vos levou a entrar por esta via? Foi uma estratégia para se desprenderem do passado?
JG – Há menos limites em SAL. Há mais espaço.

SP – Temos de contextualizar esta banda e estas pessoas na altura em que aparecem e na forma como aparecem. Fizemos aquela última tour de Diabo na Cruz em que tivemos a banda a fazer aquilo que fez durante 10 anos. Depois, quando começámos a pensar nesta banda, dá-se uma série de coisas na sociedade: a Covid e muitos outros movimentos que se passaram nestes últimos dois anos. A banda nasce nesse contexto. Também as questões da sonoridade são diferentes. Por exemplo: o Vicente, que se juntou a nós, traz uma sonoridade muito própria e que muda, de alguma forma, o som ao qual estávamos habituados – e que não só muda, como acrescenta. Tal como a forma de escrever também é diferente: são agora outras pessoas a escrever as canções.
Essa brincadeira do auto tunenão é mais nem menos que uma forma de criar uma personagem dentro daquela que sou quando escrevo as canções; de acrescentar outra personagem. Até porque o universo musical que temos e os nossos gostos são tão variados... há agora mais liberdade estética do que havia noutras bandas em que estivemos. Podemos viajar um bocadinho para todo o lado, e talvez daí essa visão de SAL ser mais experimental. Eu espero que esse lado quase espontâneo consiga ser transmitido, porque tudo isto foi criado à flor da pele: todos os temas deste primeiro disco, da letra à composição, foram muito sentidos por terem sido criados naquele espaço de tempo muito sofrido de confinamento. O disco reflete-o. Essa necessidade e capacidade criativas que, felizmente, ainda temos permite-nos continuar a compor.O facto de compormos muito faz com que possamos viajar para outros universos – e, aliás, é isso que estamos a fazer: já temos repertório para gravar mais discos e estamos a pensar fazê-lo. Há uma certa alegria no facto de podermos fazer determinadas abordagens estéticas com um à vontade e com uma abertura de espírito da qual estávamos a precisar. Talvez os tempos também o peçam…

MIH – Cruzando esse “à vontade” com o tema “Não Sou da Paz”, o qual tem um teor mais próximo, talvez, do manifesto, sentem que essa é uma liberdade que têm agora que não tinham antes? A de criar músicas com este tom?
JG – Nós não escrevíamos as letras. Logo aí havia uma mensagem que nós nunca poderíamos passar. As letras vinham daquela cabeça.

MIH – Vocês subscreviam-nas?
SP –Uns mais que outros. Nós somos um grupo, mas também somos indivíduos, cabeças pensantes – e cada um há de ter a sua visão. Ninguém quer sabotar as letras do outro, nem me parece que em Diabo isso tenha estado para acontecer, mas, continuando com o exemplo da “Não sou da Paz”: fui eu que a escrevi; a forma através da qual está escrita pode não corresponder àquela que haveria se fosse o João Gil a escrever, mas não é algo do qual João Gil discorde ou recuse. Tal como a estética musical ou os géneros podem ir para qualquer lado, também o conteúdo lírico ou poético pode viajar para outro sítio.

MIH – Mas, a música tem de ter esse papel de manifesto? Ou, só fazer música é por si uma forma de manifesto?
SP – Acho que a música não tem de ter. eu como indivíduo quero ter esse papel. Pode ter, mas não tem de ter. Nem a música, nem Arte nenhuma.

MIH – Pode haver uma música que fale sobre romãs…!?
JG – Não só pode, como, se calhar, eu me iria identificar mais com essa.

SP – Se fores um indivíduo com uma forte posição política ou uma determinada visão sobre a sociedade que é forte, é normal que vás escrever sobre ela. Acho que a Arte não tem de ter esse vínculo. Felizmente, pode fazê-lo, mas nós enquanto artistas podemos ou não querer fazê-lo. Eu como músico quero muito ser ativo em determinados assuntos, mas porque já o sou como indivíduo. Isto é uma coisa de cada um.

JP – Se tens coisas para dizer, não podes esconde-las.

SP – Sim, se tens para dizer, dizes! Nós temos uma Democracia ainda novinha, se comparada com outras. No período pós 25 de abril, tivemos músicos maravilhosos que fizeram uma série de canções, versadas em torno do mesmo tema. Passados 10 anos, foram vistos meramente como cantores de intervenção. O que é um disparate, porque há nessas canções muita música, letra e aspetos incríveis, mas que foram relevados pelo estigma que os associou meramente a atores políticos.

VS –A arte é uma folha em branco, tu preenches aquilo que tu quiseres, e transmites o que tu quiseres. Certas pessoas vêm uma folha em branco e fazem a melhor maçã que já viram porque sabem que, um dia, aquela maçã vai proporcionar uma série de outras coisas. Essa maçã muito bem desenhada demorou horas de trabalho para ser concluída, nessas horas de trabalho o pintor manifestou, em cada pincelada, uma intenção, um pensamento. No fim, é apenas uma maçã, mas da ideia de querer pintar uma maçã até estar concluída vai muita coisa, e é esse o seu manifesto. Podia ser um quadro com Cavaco Silva, mas é uma maçã, e não deixa de ser um manifesto, até político. Tudo o que fazemos na vida é política, do bom dia que damos aos vizinhos, ao dar pisca na estrada. Uns fazem coisas diretas e manifestamente políticas, outros fazem coisas bonitas,feias ou escrevem de uma maneira ou de outra. No fim, é tudo expressão, manifesto.

SP –Temos de perceber o contexto deste disco. Repara na quantidade de situações que aconteceram e ganharam fôlego durante nestes últimos dois anos: a Black Lives Matter, questões relacionadas com as redes sociais, outras com a identidade de género. São coisas que nos entram pela cabeça adentro. E eu tenho opiniões. Se sinto que tenho uma coisa para dizer, não tenho problemas em dizê-la. E a banda é um reflexo disso, quer politicamente, quer esteticamente ou musicalmente falando.

​Foram quase oito meses sem veres um palco e dinheiro a entrar na conta. Estás a viver do teu amor, mas, de repente, já não sabes o que vai ser da tua vida. O Passo Forte foi uma forma de nós os cinco termos uma luz, ao fundo.

MIH – Há alguma relação entre “Passo Forte” e a forma como se posicionam perante as questões sociais que identificaste há pouco?
SP – “Passo Forte” é esta banda. Além de dar nome ao disco, foi a primeira canção que surgiu enquanto grupo, e resume muito bem aquilo que nos une e a transição de Diabo na Cruz para SAL.

JP– É o toque de caixa para tudo o que veio a seguir. É uma espécie de declaração de intenções.

VS – Um manifesto?

SP – Voltamos ao contexto: a “Passo Forte”, daqui a três anos, vai ter outros sentidos e leituras, mas talvez não nos faça sentido a nós; talvez não a escrevêssemos.

JP– “Passo Forte” foi uma canção escrita para o momento da transição para SAL, para essa altura em que a coisa ainda nos estava forte e Precisávamos de ter algo a que nos agarrar. O passo em frente, a indicar caminho. Na altura, essa temática era necessária, mas já não vai voltar. Durante a transição, precisámos da música para fazer uma espécie de “limpeza”, de purga.

SP – Por isso é que essa música está completamente ligada a SAL. Não consegues pensar em SAL sem pensares na “Passo Forte”: tem o simbolismo de ter sido a nossa primeira canção e ter correspondido àquele momento concreto. Aliás, das canções que temos para o próximo disco, muitas já nem tocam esse universo lírico: vamos falar de outras coisas.

VS –Estamos a viver o Covid, e nós, enquanto músicos e pessoas que trabalham no meio das artes, ganhámos um calo gigante. Foram quase oito meses sem veres um palco e dinheiro a entrar na conta. Estás a viver do teu amor, mas, de repente, já não sabes o que vai ser da tua vida. O "Passo Forte" foi uma forma de nós os cinco termos uma luz, ao fundo.

"Ter a sorte de uma guitarra
Para ajudar a passar"

Estes são dois versos de "Não Vale Chorar", faixa 7 de Passo Forte, e que descrevem, nas palavras de Sérgio Pires, aquela que foi uma "tábua de salvação" para resistir aos meses de confinamento:

Nós, pelo menos, ainda nos temos a nós e estas canções para nos agarrarmos. Apesar de termos muitos anos disto e muita experiência em bandas, esta coisa de ser um bebé novo significa uma primeira vez para uma data de coisas. É muito revigorante.

SP – Em particular para os músicos, técnicos e restante malta do espetáculo, foi muito dramático. Ainda assim, nós tivemos a sorte – se é que lhe podemos assim chamar, de ter um projeto a nascer naquela fase. Tínhamo-nos uns aos outros que além de músicos somos amigos, e tínhamos uma banda que estava a começar, o que nos permitiu pensar: “ok, vamos sofrer muito nos próximos meses, não vamos ter dinheiro, vamos viver à custa de familiares ou amigos, mas temos o projeto. Por isso, bora não ficar maluco, fazer canções, trabalhar e partilharmos coisas enquanto isto não melhora”. Este projeto foi fundamental. No fundo, é um bebé. Claro que o tempo de gestação foi muito grande, por causa do Covid, mas é ainda um bebé: estamos a dar o oitavo concerto.

VS – Temos muita sorte por estarmos onde estamos e por estarmos a dar os concertos que estamos a dar. Nenhuma outra banda, em situação alguma, tem seis concertos antes do disco lançado. Só se nos anos 90…

SP – Foi quase uma tábua de salvação à qual te agarras para passar estes momentos mais difíceis. Apesar de estarmos nesta fase de dar concertos, temos consciência de que aquilo que o estúdio nos proporciona é bom e, se a coisa apertar outra vez, é para lá que voltamos! Em último caso, fechamo-nos no estúdio, gravamos mais um disco e esperamos.

JG– Se isto agora de repente fechar outra vez, ‘bora trabalhar, fazer coisas e companhia uns aos outros, em vez de ficarmos enfiados cada um no seu estúdio a dar em doido.

VS – Quando me convidaram para a entrar na banda, tinham com o objetivo de concretizar um primeiro disco e, num mês, estávamos a gravar nos Estúdios Namouch! Da série de canções que ouvi mal entrei, eu percebi que algumas fariam mais sentido num segundo disco.
Estamos a viver a nossa primeira guerra. Temos de sair da bolha temporal, perceber que isto pode demorar e arranjar uma certa resistência.

MIH – Não será uma batalha dentro de uma guerra como certo processo contínuo?
JG – Os nossos pais passaram por outras batalhas, é um processo que é diferente para todos, apesar de mundial. Cada um vive as suas experiências um bocadinho da sua forma.

SP –Conheço músicos que ficaram tão em baixo, que acabaram por desistir. Nós, pelo menos, ainda nos temos a nós e estas canções para nos agarrarmos. Apesar de termos muitos anos disto e muita experiência em bandas, esta coisa de ser um bebé novo significa uma primeira vez para uma data de coisas. É muito revigorante.

MIH – Porquê SAL?
JG– O nome levou-nos quase à loucura. Tínhamos de resolver a situação, porque já estávamos sem nome havia algum tempo. Chegámos a ser os "Banda Nova".

SP – Começou tudo antes do nome: fomos para estúdio antes de ter nome, com as canções praticamente feitas. Reuníamo-nos, saíamos dessas reuniões com listas a abarrotar de nomes, mas havia sempre um de nós que discordava de um nome. Decidimos então que não seríamos nós a decidi-lo, e abrimos a votação de outras pessoas. Reduzimos os cerca de 140 nomes iniciais para 30, os quais levámos a votação. Ganhou um nome, mas, dois dias depois, alguém descobriu que esse nome já existia, e tivemos de o abandonar.
Entretanto, o João Pinheiro, em conversa com o Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa, com quem já tínhamos tido oportunidade de tocar ao vivo: quando fizemos a tal tour de Diabo, já sem o Jorge Cruz, convidamos o Carlos para vir tocar connosco. Ficámos próximos, há muitas coisas de comum entre nós, ele é um contador de histórias incrível.

VS – Nessa conversa, o João lá referiu que andávamos à procura de nome, ao que o Carlos perguntou: “porque é que não é SAL?”

JG – Já havia uma identidade a nascer. Já havia músicas. Depois, querias sair do universo da banda anterior. Tinhas de arranjar um nome! Não vais ter um filho e andar dois ou três anos até lhe dares um nome! Depois disto, consegui voltar a dormir!

SP – Quando, finalmente, parámos dois minutos para pensar na palavra, foi muito fácil de encaixar 'SAL' no nosso contexto e na nossa música. Mais tarde, e isto é spoiler, vão perceber esta ligação do Carlos Guerreiro com a palavra ‘SAL’ e com a banda!


FONTE Make It Happen   FOTOGRAFIA Alexandra Farinho / Epopeia Brands
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