De símbolo de pobreza a elemento de moda, pela palma se reinventa a tradição

 

Alcofas, capacheiras, alcoviteiras, cabanejos, golpelha, ceiras e albardas – quantos conhecem estes termos ou sabem que designam objectos indispensáveis a um quotidiano de outrora; quantos lembram do tempo em que era deles a vida rural, ou os viram já registados em postais, fotografias e demais representações iconográficas da tradição algarvia?

 

I – Imaginário social, património material e imaterial

As mãos entrançam as longas tiras, e depois cosem, pesponto ante pesponto, parte a parte, até que o processo finde numa peça, que pode tanto obedecer ao ancestral a que remete o saber, como ceder e adaptar-se às demandas contemporâneas. Antes, algumas dessas peças serviam para levar para a horta; hoje, para ir às compras. Antes, eram símbolo de pobreza; hoje, há apetecíveis objectos de moda e design, muitos deles feitos por encomenda e personalizados aos gostos e caprichos de quem compra, o que resulta em criações únicas. A provar esta confluência de tempos, em redor de nós há abanos, ceiras, chapéus e alcofas, onde o fundo tanto se pode estreitar como alargar – consoante a profundidade desejada, mas também candeeiros, de tecto e de pé, molduras de espelho, malas de tiracolo e de ombro, abajures, ganchos para o cabelo. Ferramentas? Mãos e uma agulha. Materiais? Apenas um: a palma (Chamaerops humilis, popularmente também chamada de palmeira anã), espécie de flora brava que cresce abundante e naturalmente nos territórios a Sul de Portugal, em particular no Barrocal algarvio, ainda que, segundo Catarina Oliveira, investigadora no Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela, tenha vindo a diminuir com a extensão da lavoura, a partir de meados do século XIX. Já lá vão quatro milénios desde que se olhou pela primeira vez para esta planta e dela se inventou a empreita: técnica de entrelaçar as folhas provenientes dessa planta. Tradicionalmente trabalhada por mulheres, enquanto aos homens cabia a cestaria – resultante do entretecer da cana e da verga de vime ou salgueiro, foi da necessidade de acondicionar, transportar ou conservar bens alimentares – nomeadamente produtos agrícolas locais, como amêndoas, alfarrobas, figos e laranjas, que nasceu a empreita. As referências a este ofício surgem a partir do século XVI em variados suportes de discurso sobre a região, como memórias, corografias, monografias ou nos postais e fotografias de que acima se fala. No entanto, a nomenclatura remete a um tempo bem anterior na região: a origem árabe do termo “alcofa” (al-quffa), um dos objetos mais comuns da empreita, confirma tratar-se de uma técnica já desenvolvida durante a presença islâmica na Península Ibérica, iniciada no ano de 711 a.C., e que é ainda hoje desenvolvida no Rift Marroquino.

Outrora, era rara a casa algarvia onde a empreita não entrasse, mas hoje é para a extinção que caminha. Para inverter o cenário, talvez fintar o devir, foi aqui, para lá desta porta da Rua Vice-Almirante Cândido dos Reis, em pleno centro histórico de Loulé, que se criou, em 2017, a Casa da Empreita. O espaço é propriedade do Município de Loulé e um dos cinco que constituem a Rede de Oficinas do Loulé Criativo – projecto da Câmara Municipal que visa a valorização da identidade e da cultura, do património imaterial e a intrínseca revitalização das artes tradicionais, apostando, para tal, na formação profissional de artesãos. Eis a empreita como exemplo desse património – que é material por ter a palma como recurso palpável de onde parte, mas também imaterial, por envolver algo que vai para lá dessa planta: um saber-fazer, engenho ou mestria, algo que toca a etnografia, o espírito que subjaz ao imaginário popular, em tempos desenvolvida por necessidade e fim pragmático, e hoje estímulo à criatividade e aos dotes daqueles que a não deixaram sucumbir no tempo.  

Além das artesãs do Centro Social e Comunitário de Vale Silves, nesta casa encontramos 12 outras mulheres que trabalham e comercializam o que criam, contribuindo para a perpetuação desta técnica ancestral e tão profundamente enraizada na identidade de Loulé: Almerinda Miguel, Alzira Neves, Cremilde Lourenço, Duartina Mendes, Inácia Coelho, Lurdes Costa, Margarida Cortez, Odete Dias, Odete Rocha, Valentina Silva, Sónia Mendez. A 20 de Junho de 2022, partimos rumo à casa da empreita, e nela encontrámos Valentina Silva, de 77 anos, e Sónia Mendez, de 61, ambas artesãs do concelho de Loulé.

 

Nas imagens, Valentina Silva e Sónia Mendez, artesãs da Casa da Empreita, Loulé.
© Alexandra Farinho

 

Começou aos oito, mas foi aos 17 que fez da empreita o seu trabalho, “ainda que tenha trabalhado nisto toda a vida” e ainda que tenha tomado gosto por outras técnicas, “como a pintura de porcelana, da qual cheguei a dar aulas”, conta Sónia Mendez, hoje, aos 61. “Acho que sou a única daqui que fez disto o seu trabalho. As restantes tinham outros trabalhos.” Ao lado de Sónia está o exemplo: Valentina Silva, de 77 anos, que “trabalhou muito tempo na hotelaria, ao mesmo tempo que ia trabalhando na empreita. Trabalhava na hotelaria durante o dia, e à noite fazia isto.” Valentina começou “pequenina, a ver a minha mãe a fazer a empreita. Também eu quis começar a mexer nas palmas, e ela ensinou-me. Aprendi também logo a fazer a malha de palma, aquela com os buraquinhos, que era como a minha tia-madrinha fazia os sacos maiores.” Por seu lado, Sónia nasceu na Venezuela e veio para Portugal perto dos oito anos. Foi aí que se deu a epifania: “a minha avó e as vizinhas trabalhavam a palma, a minha mãe era costureira e só fazia isto à noite”, o que tornava o trabalho árduo pois, “antigamente, não havia luz eléctrica, só candeeiros a petróleo.” Sónia foi “aprendendo com a minha avó, uma formação dos oito aos 15! Acho que só eu e a Valentina sabemos fazer todas as técnicas com a palma: desde a empreita à malha: a primeira é coladinha, como faz a Valentina; a segunda é com os buraquinhos.” Para esta, “temos de usar a baracinha e a palma. A empreita faz-se só com palma, e depois é cosida.” Naquele tempo, recorda, “já havia aquilo a que se chamava ‘obra fina’ – empreita mais estreitinha. Faziam-se altinhas muito pequeninas. Já se fazia uma coisa um bocadinho diferente. Mas de há uns anos para cá é que foi uma explosão!” E de que explosão falará Sónia? Este saber, diz, “já vinha da minha bisavó, e possivelmente de muito atrás. Até porque a minha avó fazia a alcofa do trabalho, que era diferente destas: as que ela fazia eram para levar para o campo, e estas, hoje, são para ir às compras. As que ela fazia para o campo ficavam muito rudes. Tinha de ser, tinha de ficar forte. A gente faz com duas palmas, ela fazia com três ou quatro na mesma alga, para ficar consistente.”

Em tempos, onde Valentina vivia, “juntávamo-nos umas quantas, um dia íamos para a casa de uma, outro dia para a casa de outra, e cada uma fazia a sua empreita, o seu saco; umas faziam alcofas, outras sacos fechados – aquilo a que a gente chama ‘duques’.” Um momento de encontro que no caso de Valentina não dista muito do tempo actual, mas que Sónia explica tratar-se de um ritual que vem de trás: “antigamente fazia-se muito isso. Combinávamos um almocinho, e a seguir íamos um bocadinho para a casa da vizinha trabalhar na empreita.”

No caso de Sónia, tudo começou ao ver a avó a apanhar as palmas – “pedi-lhe que me ensinasse como é que se apanhava, o que se podia ou não fazer.” Isto porque, na altura, a planta era mais respeitada do que hoje, pois sabiam-se os cuidados a ter nesse momento. Sónia bem o adverte: “as pessoas começaram desenfreadamente a apanhar palmas, sem saberem o que estão a fazer. Como ninguém as ensinou, também não perguntam, mas se apanharem mal as palmas, elas levam muito tempo a recuperar.” Dando razão a Sónia, e de maneira demorada e calma – em consonância com as virtudes que demandam também a empreita e a aprendizagem deste e de qualquer outro saber, Valentina esclarece-nos: “não se pode apanhar o núcleo todo da palmeira: é no meio que as palmas estão a nascer. Se apanharem as palmas todas, a planta depois leva muito, muito tempo até começar a rebentar novamente. Fica ferida. É preciso deixar sempre um ou dois rebentos; apanhar os que estão à volta”, se bem que algumas das palmas que chegam às mãos de Sónia e Valentina vêm fechadas, mas “deixam-se sempre um ou dois rebentos” – aliás, há peças que se fazem com as palmas abertas; outras com as fechadas”, explica Sónia, avançando: “a diferença é que, antigamente, essas palmas que estão à volta eram para fazer vassouras, pinceis, alcofas para o trabalho.” Após a apanha, as palmas são submetidas a “um processo de secagem. Depois, se não ficarem na cor pretendida, têm de levar com fumo de enxofre. A verdinha é natural – apanhámos e secámos à sombra. É usada em peças pequenas ou em pormenores, pequenos apontamentos”, explica Sónia. A par dessas, saltam à vista as peças de cores, para as quais “a palma tem de ser tingida, como se fazia antigamente com os tecidos, em água quente numa panela.”  O último passo é a cosedura: “cosem-se as palmas como se fosse costura, como se cose tecido. Com uma agulha tradicional, que difere apenas pelo buraco de maior dimensão. Fazemos uma baracinha, ainda mais fininha que esta que tenho nas mãos, e vamos encaixando uma na outra.”

 
 

Colocando lado a lado as palavras de Sónia e Valentina com as de Frei João de São José, e assim pondo em diálogo os tempos tal como à própria empreita acontece, já em 1841, em “Corografia ou Memória Económica, Estadística e Topográfica do Reino do Algarve, escrevia João Baptista da Silva Lopes:

«Em todo o reino se faz uso das obras de palma, que no Algarve se fabricão; e muitas ainda são procuradas pelos estrangeiros. Este artigo deve todo o seu valor ao feitio: a matéria prima he dom espontaneo da natureza; nasce e cresce nos terrenos não cultivados e pedregosos, nas charnecas e nos serros; não pertence a pessoa alguma; he de quem a quer apanhar. Todo o trabalho he feito por mulheres: ellas a vão colher no mais intenso calor do verão; ellas a lanção ao sol, e sem mais preparo fazem as vassouras; elas a preparão lavando, e dando-lhe fumo de enxofre para fazerem as outras obras, como condeças, esteiras, capachos redondos, golpelhas, alcofas, e a cosnideravel quantidade de seiras, em que se mette todo o figo e passa de uva que se exporta: ellas ainda tingem algumas de preto e encarnado, com que bordão e matizão aquellas obras, ás quaes dão bonitos lavores: com a empreita mais estreita, e fina fazem chapéos de que até algumas senhoras usão; e se mais espirito nacional tivessemos, talvez poderiamos dispensar  os de palha, que os estrangeiros nos vêm trazer por bom preço, e preferiríamos os de palma por ser obra de casa.» (Lopes, 1841: 151-152)

 
 

II – Da necessidade à moda, e a sustentabilidade que, afinal, não é de agora

No século XX, os discursos gerados pelo desenvolvimento do turismo começaram a impregnar no imaginário social a ideia estereotipada de um suposto Algarve típico, e, por força disso, a empreita ganha relevo na iconografia da região. Postais e fotografias começam a circular de mão e mão, e, com eles, retratos sociais que levam registados no papel todo o forasteiro-visitante quando parte. É curioso pensar como o fascínio forasteiro por algo autóctone à região se prenda com uma admiração pela componente visual, descurando a dimensão social que enquadra a empreita num teor pragmático e numa vida modesta nas quais se origina. Um contraponto que revive Sónia: “antigamente, guardavam-se os figos nas alcofinhas da empreita. Depois vendiam-se nas feiras”, diz. “É irónico como uma coisa que começou para se ir à horta agora seja já um acessório de moda”, proponho eu. “Às vezes, digo que se a minha avó voltasse cá achava uma diferença…”, responde-nos Sónia. “Caía outra vez!”, exclama Valentina.  

Ainda sobre a conotação de pobreza associada à empreita, que dava azo a uma apreensão em relação à decisão de enveredar pela arte, de fazer dela trabalho, diz-nos Sónia: na altura, “a minha mãe perguntava-me assim: «tens a certeza de que queres aprender isto? Tu não vais ganhar nada com isto! Isto não te dá nada para comer!» E olhava para as minhas mãos e dizia: «com essas manitas não vais lá.» E eu respondia: «mas eu gosto!» Naquele tempo, isto não tinha valor nenhum. Até era conotado um bocadinho como sinal de pobreza, identificava a pobreza. Quem o fizesse, estava a dizer às pessoas que não tinha dinheiro para comer. Ainda hoje há quem pense que fazer isto para vender é ainda sinal de pobreza; que isto não é coisa digna de se fazer. Mas como eu sou teimosa, nunca desisti. Não sei se fiz bem ou mal, nunca tive um subsídio de férias, umas férias garantidas, mas foi uma escolha minha.” “Mas já viu? Agora tem as suas peças espalhadas pelo mundo inteiro…”, nota Ana Cristina, que nos acompanha. E, de facto, há peças que de Loulé rumaram já “à Suíça, muitas para França. Umas foram com os donos, outras fomos nós que enviámos para o estrangeiro, pelo correio”, confirma Valentina. A lista aumenta: “já mandei também para a Alemanha, Estados Unidos, Canadá, imensas para Espanha. Em Portugal, enviamos muitas para Lisboa, mas já é tão normal, que nem ligamos! Este espelho está à espera que a dona o venha buscar para levar para Lisboa”, conta Sónia, para quem esta itinerância das criações não é uma estreia: “quando pintava as telhas, elas iam para todo o lado, mas agora, com a Casa da Empreita, foi a cereja no topo do bolo! Já andava há muitos anos a dizer que devíamos ter um sítio onde todas pudéssemos trabalhar e vender; que as pessoas, assim, dariam mais valor às coisas. Nessa altura, nem se dava muito valor a isto.” E sentem que essa valorização se deu? Pergunto, na tentativa de compreender a ‘explosão’ de que falava Sónia antes. “Sem dúvida! Desde logo porque é o município que nos representa. Se o município tem, é porque tem valor. Então, as pessoas começaram a olhar para isto de outra maneira, começou a aparecer muita gente interessada, e esta questão da sustentabilidade também veio ajudar, porque, afinal de contas, as pessoas antigamente também pensavam nisso – embora não se soubessem expressar e explicar o que estavam a fazer, não tivessem esse conceito para o designar, mas elas estavam precisamente a fazê-lo: a cuidar do meio ambiente, desde logo porque ajudavam a limpar o mato, através da recolha das folhas de palma”, reflecte Sónia.

            E se outrora as alcofas de empreita serviam essa necessidade pragmática, hoje já sai “uma série de candeeiros para um hotel de Olhão; outros para uma residencial de Faro”, e trabalham agora na decoração dos quartos de uma herdade de Lagoa. Além disso, há atrás de Valentina um candeeiro de pé, que “foi ideia da Susana”. Sónia fala da filha, designer, responsável pelo desenho desta peça que, diz Valentina, “levou mais de um mês”. Susana “também sabe as técnicas da empreita e de vez em quando ajuda, mas a onda dela é mais os fios, os tecidos.” Nesta Casa, cada uma das artesãs trabalha para si, mas “já houve um presépio em tamanho real em que todas colaboraram. Cada uma fez a sua parte da empreita, e eu [Sónia] fiz a montagem.”

Questionadas sobre as peças mais trabalhosas de fazer, Valentina refere “o tapete, com várias peças, umas grandes, outras pequenas, outras com tiras, foi mesmo terrível de fazer!” e Sónia fala de uma colcha para a cama, encomendada por uma senhora a quem perguntou “se tinha a certeza, que isto era duro, desconfortável para dormir. No fundo era um tapete, mas para por em cima da cama. Quentinho é! Que isto aquece.” E antigamente, isso era coisa que se fizesse? Pergunta Ana Neto, que diante de nós também está. Sónia imagina “que até se poderia fazer: os meus tios trabalhavam também em cana e faziam trabalhos do campo. Por vezes, quando chovia, metiam a garupinha pela cabeça, uma espécie de alcofa retangular, para não se molharem.” Metia-se uma vara lá dentro, e, quando não se levava nos burros, levava-se na cabeça”, relembra Valentina.

 
 

III –A liberdade no ofício; trabalho que é terapia

Se, outrora, era exclusivamente da palma que se fazia a empreita, a re-significação desta arte ancestral confere-lhe hoje uma liberdade que permite testar as capacidades e propriedades da planta. Assim, por via da exploração de outras técnicas e materiais, como o tecido e a renda, tenta-se criar objectos “mais fora do normal”, que aprazem sobretudo Sónia, a qual diz ter “ideias armazenadas”, como é exemplo um espelho que tem diante dos pés e que aguarda pela entrega. “Aqui, cada uma tem a sua arte”, diz. Também por essa razão, que pressupõe a empreita como forma de expressão artística, cada artesã dedica-se à confecção das suas próprias peças: “tudo o que está aqui cada uma é que faz”. Só trabalham juntas em residências artísticas, pelas quais ambas já passaram. Já que falamos de liberdade, pergunto-lhes, então, se já houve assim uma peça muito aborrecida que lhe tenham pedido. Sobre o que é uma peça aborrecida, Sónia responde: “é quando temos de seguir as medidas muito à risca. Quando não podemos inventar muito, sair dali. E aquelas peças que contrariam muito o sentido da palma, da empreita, que seriam impensáveis de fazer”. Por vezes, acrescenta, “até nos chateamos com tanta encomenda que não nos deixa pensar.” Porque vos rouba liberdade?, pergunto. “Sim. Se a pessoa já traz um desenho, um propósito, não podemos inventar muito…a única coisa que temos de perceber é se conseguimos fazer ou não. Aprendi com o tradicional: a alcofa, a balça, as bases para as panelas. Hoje, fazemos coisas que antigamente seriam impensáveis.”

De onde vem o estigma que ordena que “trabalho é trabalho, conhaque é conhaque”? Que princípio é este que nos faz desejar a noite de sexta-feira? Que dicotomia trabalho-ócio é esta que os separa, em relação disjuntiva, ao invés de os conjugar – quiçá em simultâneo? Que coisa é esta de procurar nas margens dos dias coisas que nos aliviem a cabeça saturada por um trabalho? Tenho em mim uma vaga impressão de que aquilo que é o trabalho de Sónia, Valentina e restantes dez artesãs desta Casa, seja também a maneira com que se abstraem – de coisas que vão além do trabalho. Partilho-o com ambas, que suavizam a vagueza que julgava residir na minha impressão: “isto é uma terapia. Enquanto o faço, não me lembro de outras coisas. É por isso que, quando trabalhava na hotelaria, havia noites em que chegava a casa à tardinha, jantava, e depois lá ia eu sentar-me no meu cantinho, onde passava quase duas horas a trabalhar. Quando me levantava para me ir deitar, parecia outra! Quando me sentava, vinda do trabalho, cansada do fim do dia, de o passar todo de pé, era cá uma dor nas pernas! Mas a fazer isto eu descansava, já não me doíam as pernas, não me doía nada!”, conta Valentina. Em harmonia, também Sónia teve de “cuidar dos meus pais, e depois do meu marido, com muitas doenças pelo caminho. O que me valia era o pedacinho que eu tirava para trabalhar nisto, aliviar a cabeça, o stress. Infelizmente, fiquei viúva há sete anos, e foi isto que me ajudou a vir para cima. Não porque tivesse vontade de o fazer, porque nessa altura não tinha vontade de fazer coisa nenhuma, mas surgiu o último concurso dos presépios da câmara, e a minha Susana começou a insistir que eu tinha de fazer um para participar. Tanto andou, que eu lá fui. Mais tarde, ligou-me a Teresa a convocar-me para uma reunião, que estavam a pensar criar uma Casa da Empreita. Foi o que me ajudou, porque depois tive de trabalhar, fazer, não tinha tempo para pensar.”

 
 

IV – “MendeZ”? A estória por detrás do erro

Algures na escuta de Sónia e Valentina, as artesãs dão conta de personificarem o fenómeno da emigração, aqui representada por um dos filhos de Valentina, “pedreiro em França”, e pelo contexto em que nasceu Sónia e que se cristalizou no erro de registo que carrega o “z” do apelido.

Segundo “Vinte anos de emigração portuguesa: alguns dados e comentários”, estudo realizado em 1973 por M.L. Marinho Antunes, entre 1950 e 1960 chegaram à Venezuela 73 554 portugueses, tendo 1955 sido o ano em que mais chegaram a esse país, que registou a entrada de 5718. Foi no contexto dessa vaga emigratória que nasceu Sónia Mendez, filha de pais aí emigrados, e razão do “z” que lhe fecha um apelido que deste lado levaria um “s” português. “Os meus pais, também algarvios, tinham emigrado, mas, entretanto, o meu pai adoeceu, e voltaram para Portugal, tinha eu sete, quase oito anos. Os meus irmãos já nasceram cá. Os meus pais sabiam ler, mas não o suficiente para se certificarem de algumas coisas. Acho até que foi outra pessoa a ir registar-me lá na Venezuela e, como lá o nosso “s” vira um “z”, assim ficou o meu apelido com esse “erro” – que é erro apenas para nós.  Sou a única na família que tem o Z! Mais tarde, quando me deram a nacionalidade portuguesa, ainda me perguntaram se não queria mudar, mas eu disse que não. Se está assim, é assim que fica.” Apesar de terem sido apenas os sete primeiros os anos que Sónia passou na Venezuela, há coisas de que se lembra “muito bem: de andar na escola, do que aprendi, embora em casa se falasse português, e embora as primeiras músicas que ouvi tenham sido da Amália. Sempre que o meu pai chegava a casa, ia ao gira-discos para ouvir os discos que tinha levado de Portugal. Era Amália, António Mourão, Ada de Castro. Era o que havia lá em casa. O meu pai distribuía pão e a minha mãe era costureira, sempre foi, e quando regressou para Portugal continuou a ser.”



V – De aprendizes a formadoras

A fazer jus aos objectivos que movem o Loulé Criativo, na Casa da Empreita há uma aposta nas formações. Algumas delas acontecem por via de workshops, nos quais aparecem, diz Sónia, “algumas pessoas que têm curiosidade em saber como é que se faz; outras que já sabiam, mas se esqueceram e querem relembrar.” Ainda assim, continua, “um workshop é muito pouco para se aprender: aprende-se a técnica da empreita e faz-se um capachinho, por exemplo. Desse género, para abanar” e ainda, continua Valentina, “a coser. Mas para aprender tudo, desde o princípio, e aperfeiçoar, isso só num curso.” Isto porque, retoma Sónia, é preciso “aprender com calma, porque até chegar aqui há muita coisa pelo meio; é um processo. É preciso aprender a tratar a palma, a lavar. Numa formação de 25 dias, imaginemos, já se aprende a fazer a alcofa, a subir o ramo, a ir direito, a fazer a malha. Depois vem a prática, ao trabalhar, com os erros. Ao fazer como a minha avó fazia: dava-me uma palma para eu trabalhar, eu fazia um grande rolinho de empreita, toda contente, e ela dizia: “ah, está muito boa! Agora desmancha e faz tudo outra vez.” E eu perguntava: então está boa e manda-me desmanchar?’ Aconteceu duas ou três vezes. A seguinte já não fui mostrar. Escondi o rolo. Mas ela encontrou-o, e disse que estava muito perfeito. Uns anos depois, percebi o que estava ela a fazer: apesar de ela não querer que eu me dedicasse a isto, queria saber até que ponto é que eu gostava de o fazer. Devia pensar que se eu fizesse e desmanchasse uma e outra vez seria porque gostava mesmo. Então aí é que ela se dedicou a ensinar-me tudo o que sabia. Porque até ali eu ia vendo. Naquele tempo, ninguém parava para ensinar: nós víamos fazer, depois pegávamos nas palmas e tentávamos imitar.” “Hoje, são vocês as professoras”, digo-lhes, e Sónia responde: “dá-nos muita alegria ver que as pessoas querem e conseguem fazer isto” pois, continua Valentina, “se formos só nós a trabalhar na empreita, se os mais novos não começarem a aprenderem e a dedicarem-se um pouco, ela acaba-se.”

 

VI – Tradição que é também re-significação

Se é facto que as circunstâncias do tempo afectam um saber ou conhecimento, recontextualizando-o e realocando-o no imaginário social da comunidade em que nasce e que se fissura em consonância com essas circunstâncias e renovação de conhecimentos, eis a empreita como exemplo: apesar do primogénito teor pragmático, expressa na necessidade de acondicionar e transportar bens, a passagem do tempo vem reinventado este saber, transformando-lhe o valor simbólico, os seus significados. Ainda que a técnica de base se mantenha, os usos adaptam-se e acompanham os desejos de hoje, esfumando a divisória de poder socioeconómico que outrora lhe era característica. Recordemos os objectos de moda e design que pela empreita se criam; as encomendas oriundas de hotéis e outros espaços públicos que recorrem à empreita para a decoração dos interiores, por contraste à inicial e única necessidade de um país marcadamente rural, e que conotava a empreita à pobreza. Hoje, pelas ruas da cidade se veem ao ombro malas e nos cabelos ganchos nascidos das mãos que trabalham a palma. A par deles, aqui e ali ainda se vejam utensílios que se mantêm para que os trabalham na terra, e que confirmam realidade rural que ainda marca alguns territórios algarvios, coexistindo com esses novos usos; pondo de mão dada o cosmopolita e o rural, mesclando tempos e realidades. Em todo o caso, nunca como hoje a empreita integrou um acervo tão tradicional e identitário da região algarvia, mantendo assim vivo uma identidade popular que lhe é próprio, uma tal sensação de pertença a uma comunidade. Um acervo que é paulatinamente entregue a um devir que é amortecido por via de projectos como o Loulé Criativo, que abrandam o risco de extinção desta arte regional e milenar.

 
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