Carolina Santos: “o nosso corpo tornou-se apenas a extensão de uma ferramenta para trabalhar com a tecnologia. A arte dá-nos essa liberdade, essa percepção”

O dia 27 de março é lembrado como o Dia Mundial do Teatro, um dia que celebra e homenageia a arte dramática desde o ano de 1961. Este dia foi uma sugestão do Instituto Internacional de Teatro, e posteriormente foi criado por este. O seu objetivo é incentivar as pessoas ao consumo e o estudo da dramaturgia.

O teatro é popularmente atribuído primeiramente à cultura grega e também à romana, civilizações que tiveram uma maior influência em sua difusão global. Ambos os povos possuem significativas quantidades de registros ligados ao drama como conhece-se hoje. Apesar disso, a História dramatúrgica surge antes destas sociedades, presentes até mesmo no antigo Egito, como indicado no artigo “Introdução à História do Teatro no Ocidente”, de Márcia Cristina Cebulski. Como apontado pela historiadora, as datas sagradas comemoradas pelo povo egípico eram frequentemente representadas em forma teatral. Nestes dias, a cidade era recebida por uma passeata dos peregrinos da região, na qual os sacerdotes e sacerdotisas revivem os momentos descritos nas lendas. Em homenagem à arte e ao teatro nacional e do Sul de Portugal, a Make It Happen esteve à conversa com Carolina Santos, cofundadora da companhia de teatro Mákina de Cena, e também com Fúlvia Almeida, presidente da Associação Cultural ArQuente.

Como surgiu a Arte na sua vida?

CS (Carolina Santos) — Eu desde pequena já tinha vontade de aparecer e “dar show” por todo lado. Eu brincava com as bonecas, montava teatrinhos e tentava fazer uma cena a dar nas vistas. Isso tudo começou a ficar mais sério para mim na escola, em que tive a sorte de ter acesso à dança e às artes plásticas. Por isso, ingressei desde cedo no Clube de Teatro, e sempre fui muito feliz a “brincar” com o imaginário. Então isso tudo começou a ficar mais sério para mim no 8º ano, em que eu tinha um grande gosto pela parte artística e pela parte visual, com o teatro e o desenho, e quando comecei a fazer mais regularmente estes exercícios.

Eu acabei por ir estudar ciências, mas mudei para artes, e o que acabou por mudar tudo foi que eu realizei um Workshop no IPJ de Coimbra com a Lúcia Ramos, e que mudou para sempre a minha vida.

Onde as coisas começaram a ser mais rotineiras na minha vida foi no Teatro Universitário, na altura fui estudar arquitetura, e consegui me inscrever no final do ano no TEUC - Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, e então aí as coisas começaram a sério. Estive no TEUC desde os 19, até os 24.

Nós tínhamos exercícios de formação e de criação para o teatro, e as aulas da universidade eram realizadas durante o dia. Na época, podíamos gerir melhor nossos horários e nossa vida, por isso durante o dia ia às aulas de arquitetura, e de noite ia ensaiar e produzir. E tudo isso era uma escola para nós, então acabava por formar muitos profissionais na área.

Portanto, eu acabei ficando mais um tempo no TEUC, fiz cenografia quando acabei o curso e fui trabalhar com arquitetura. Estava já a trabalhar por alguns anos em Évora, e acabei por perceber que a falta do teatro estava a fazer muito mal à minha vida. Então nessa altura tomei a decisão de fazer o mestrado em teatro, e oficializar minha vida com as artes cénicas. Consegui realizar um estágio na Philippe Genty, em França, depois fui para a escola Jacques Lecoq em Paris, e regressei a Portugal para fazer meu próprio projeto, e daí surgiu a Mákina de Cena.

FA (Fúlvia Almeida) — Eu sempre gostei da parte artística, desde miúda. Gostava muito de ler, de teatro. E na altura que eu vim para a Universidade do Algarve havia um grupo de teatro da universidade chamado Sin-Cera, e pensei que estava ali uma oportunidade para explorar esta parte artística. Então fui tirar um curso de formação com o Pedro Wilson, que era também formador do Sin-cera, e foi assim que tudo começou. A partir desta aventura eu comecei a apaixonar-me mais pelo teatro, e fiquei mais alguns anos em alguns grupos universitários, e nunca deixei de lado esta parte artística.

Após algum tempo, surge a ArQuente, que já não tinha um teatro tão puro e duro, mas sim envolvendo elementos de dança e de outras formas de expressão multidisciplinar que me apaixonei. Esses anos todos têm sido muito ricos e muito constantes.

Foi há mais ou menos três anos, que comecei a pensar numa perspectiva mais profissional, já que sempre levei a arte como algo para voluntariado, como um segundo emprego. E agora pude juntar essas duas faces de comunicadora e de artista.

Qual a importância do teatro para a formação do ser humano?

CS — Eu agora sendo mãe penso nas coisas de uma perspectiva diferente. Eu penso na importância de formar boas pessoas, com capacidade de entender os outros, de ler os outros, de ter uma sensibilidade para perceber situações e o mundo ao seu redor, e de criar um pensamento crítico. Eu acho que se não for através deste espaço de liberdade que a arte cria, em poder ensinar os jovens a atravessar esta barreira da auto-expressão, só os torna no fundo melhores pessoas.

Isso reflete não somente para os artistas, mas ao formar um médico ou até um advogado que sabe se expressar melhor torna ele um melhor profissional. Sobretudo agora em um mundo que nos castra com telemóveis, televisões, tablets. O nosso corpo tornou-se apenas uma extensão de uma ferramenta para trabalhar com a tecnologia. A arte nos dá essa liberdade, essa percepção. O importante é que consigas ser criativo e expressivo sem estes meios. Para mim ter essa sensibilidade é importante para formar pessoas melhores.

Como foi estrear o CREDO durante este período?

FA — O CREDO estreou em Loulé, no dia 21 de janeiro. Este é um espetáculo que é exclusivamente de dança, com coreografia desenvolvida pelo coreógrafo Luís Marrafa, da companhia belga Marrafa Company, e o convidamos a dirigir este trabalho, e ele aceitou. Durante três residências artísticas no Palácio Gama Lobo, em Loulé, desenvolvemos o espetáculo. Estreamos em janeiro, e agora vamos apresentá-lo no Teatro das Figuras, no dia 07 de abril, e o objetivo é levá-lo a todo o país, e talvez ao mundo.

Eu diria que é inevitável que não haja um pouco de interpretação ali ao meio, até porque eu e a Teresa [Silva] não somos bailarinas profissionais como a Carolina [Cantinho]. Então o que ocorreu foi um desafio da parte da Carolina em performar com duas artistas que não são bailarinas de raiz, e da nossa parte por trabalhar com uma bailarina e um coreógrafo para o espetáculo. Portanto acaba por ser um espetáculo de dança, mas que leva uma boa dose de interpretação.

Como foi atravessar este período isento de espetáculos?

CS — Houve certos auxílios. Eu tive muita sorte pois o município de Loulé é muito atento a esta questão e a estes projetos das entidades locais. Tivemos ajudas da Fundação Calouste Gulbenkian, tivemos apoio por sermos trabalhadores independentes, para que não estivéssemos tão desamparados.

Apesar disto tudo, eu ainda tenho uma opinião muito controversa em relação à pandemia, porque desde a primeira fase eu me sentia muito constrangida. Eu não queria aparecer nesta época, não queria estar nas redes sociais, divulgando meu trabalho. Acabamos por fazer duas vídeo-performances nas redes sociais. A pandemia não nos obrigou a fazer nada mais depressa ou de forma incompleta. O que eu senti é uma espécie de imediatismo que obrigou os artistas a reagirem muito cedo. Nessa fase ocorreram demasiados exageros, exposições desnecessárias.

Nesta fase as redes sociais ocuparam um lugar assustador de obrigação de presença, o que me gerou muita ansiedade. Como eu sentia que havia esta pressão, e que eu não sabia o que fazer nesta hora, isso tudo agravou esta situação. Foi então que eu li um artigo maravilhoso, em que o senhor comparou esta situação toda de imediatismo com aqueles artistas que não querem sair de cena. Já receberam dois ou três aplausos, mas queriam continuar a aparecer para receber mais. Às vezes é importante saber sair de cena. Por isso eu me retraí neste momento para repensar e pensar no que fazer.

O alívio das restrições pode trazer novamente as pessoas às casas de espetáculos?

FA — Com certeza. Saiu um estudo há muito pouco tempo, que aborda este tema, e que afirma que as pessoas começaram a perder um hábito que estavam a ganhar, que é de buscar e de ver cultura. Isso vai ser algo que será difícil de recuperar. Como podemos trazer novamente as pessoas aos teatros, as apresentações? Acho que esta queda das restrições podem já ser um começo de um caminho, e acho que devemos todos nos habituar a voltar à vida. A cultura precisa das pessoas e as pessoas também precisam de cultura.

As pessoas às vezes se esquecem que a cultura é até a forma que elas andam, como falam, seus hábitos e costumes. Quando vamos a um espetáculo, o que estamos a ver é alguém a interpretar o que nós somos. Nossos medos, indagações e pensamentos. A cultura é o que nos faz estar vivos.

O que você acha que é preciso para o teatro existir em um “mundo ideal”?

CS — Em primeiro lugar, eu acho que devemos mudar a forma que as pessoas podem aceder à cultura. É compreender o que cada grupo e que cada comunidade precisa. Talvez passe a haver uma maior sinergia entre as escolas e as instituições com os seus alunos e com a sua arte. Precisamos também compreender que o artista é uma profissão tão importante quanto as outras, e que também tem seu papel na sociedade.

Também é preciso ter esta noção de regularidade. Ser ator não é algo que acontece uma vez ao ano, é uma profissão que se trabalha meses a fio para poder apresentar dezenas de espetáculos, e não somente um. Se talvez os atores fossem mais valorizados, tivessem mais acessos às casas de espetáculo, tivessem mais público, é possível mudar esta realidade de apenas um espetáculo por ano para uma temporada completa, ou mais dias. Isso também cativa o público a consumir cultura, porque se não conseguiste ir ao teatro hoje, não tens de esperar mais um ano, podes ir amanhã.

Seria importante também ter esta conscientização das entidades locais, do governo, dos municípios. Às vezes a sensação que me dá é que quem quer aprender, fazer, assistir não sabe onde pode interagir, e quem quer ensinar não tem forma de divulgar ou de apresentar. Se conseguíssemos criar uma aproximação e uma regularidade dos artistas que não têm tanta visibilidade. Talvez com isso as novas gerações possam começar a olhar isso de outra forma, e pensar que podem trabalhar com isso, que isso é tão essencial quanto as outras profissões.

O que podemos esperar para estes próximos meses?

FA — Pela ArQuente, estamos quase a ter novamente o RE-FLUXUS, que é um ciclo de performances que a ArQuente já está a ter há alguns anos. Tivemos duas edições, depois tivemos de interromper as atividades e agora voltaremos com o projeto. Também vamos ter uma performance que se chama “Leva-me ao Céu”, no Teatro das Figuras, e que vai ser o início do nosso RE-FLUXUS, que depois apresenta-se com vários artistas que são convidados para expressar-se neste ciclo. Também vamos ter os concertos ao entardecer em setembro, passando pela Culatra, por Faro e talvez por Sagres.

CS — Este vai ser um ano incrível! Vamos estrear duas criações teatrais, uma delas virada para o público infanto-juvenil, com um grande clássico da literatura desta geração, que prevê-se a estreia em maio. E vamos ter também uma coprodução internacional, que estreia em outubro, e que teve o apoio da Mákina de Cena, em uma produção da Colômbia com o Chile, e que foi um projeto engajado politicamente, mas de forma atemporal, e que com as guerras recentes tornou-se muito atual. O projeto consiste em três mulheres em cena, com mais de uma língua em palco, e estreamos no Cine-Teatro Louletano. Vai ser um ano muito especial.

Ilustração de “O Auto da Barca do Inferno” de Gil Vicente ©

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