Luca Argel: “o Samba como género poético serve muito bem para falar sobre situações delimitadas num tempo e espaço, mas que podem ser extrapoladas para leituras mais universais”

 

Entre o Rio de Janeiro e o Porto, há uma força que descarna cidades. No passado, essa força empurrou o Samba para fora da Praça Onze, seu berço e lugar que não mais existe no mapa, mas que esse Samba imortalizou.
Mudam o tempo e o chão em que se caminha, a força ganha novos contornos, mas também aqui ela se manifesta, tal como observa Luca Argel, brasileiro radicado em Portugal há 12 anos, e tal como transpõe para algum do lirismo que faz a discografia. Ao exercício atento de observar a gentrificação que transforma, abala e desnuda a cidade, junta-se o de escrutinar silêncios e feridas de um passado que tende a resvalar para o presente; de contar as “estórias que a História não conta”; de colocar o Samba de mãos dadas com a História do Brasil. Tudo isso encontramos em “Samba de Guerrilha”, álbum lançado em 2019 e que é também um inventário de ecos, onde o grito, a sobrevivência e a reação se fazem pelo Samba que, tal como diz Luca, “é testemunha; primeira pessoa. É uma ferramenta muito boa para falar dessas estórias.”
Luca Argel subiu ao palco do Teatro das Figuras, em Faro, no passado dia 15 de abril, no âmbito do festival Live in a Box. Na tarde que antecedeu o concerto, conversámos sobre Samba, História e tanto mais - um momento que abaixo se transpõe.

“Samba de Guerrilha” foi lançado no ano passado, mas começou a ser pensado mais cedo, em 2016, no âmbito de um projeto em que estiveste envolvido no Porto. Queres falar um pouco sobre esse trajeto?

O projeto “Samba de Guerrilha” começou a partir de um convite que recebi da Contrabando, uma associação do Porto que já não existe. Na altura do processo do Impeachment, eles dedicaram toda uma semana ao Brasil, à questão política que estava a acontecer na altura. Convidaram vários artistas brasileiros residentes no Porto, para desenvolverem exposições, conversas, leituras, concertos, e chamaram-me para fazer alguma coisa. Na altura, nem pediram especificamente um concerto, mas eu decidi inventar um concerto em que tocasse sambas políticos e fosse contando um pouco da história desse samba e da história do Brasil. A minha intenção era fazer uma ponte que ligasse a História desde a escravatura até ao golpe de 2016, e tentar mostrar como existe uma continuidade nos acontecimentos, uma coisa que se veio encadeando, repetindo, e usar a história do Samba para o contar. Este foi o embrião de “Samba de Guerrilha”. No dia em que apresentei o projeto pela primeira vez, o Rui Silva, colega e designer que lá estava, disse que queria transformar o projeto numa fanzine. Durante muitos anos essa fanzine não aconteceu, mas eu continuei a apresentar “Samba de Guerrilha” - mudava uma música ou outra, adaptava o texto, via o que funcionava mais, porque era suposto não ser exatamente um concerto, mas uma conversa. Apresentei-me com o “Samba de Guerrilha” em todo o tipo de lugar: nessa associação do Porto, em associações de Lisboa, em bares, fóruns de debates políticos, fundações, como a Fundação José Saramago e na Casa da Achada, ambas em Lisboa.

O conceito foi-se consolidando ao longo dos anos, até eu receber uma provocação em 2019, depois de uma dessas apresentações: um amigo de Lisboa, que trabalhava numa edita grande em Portugal, sugeriu-me transformar o projeto num álbum - algo que nunca me tinha ocorrido. Vindo dele, que trabalhava nesse meio, achei que talvez desse para fazer alguma coisa, apesar de estar um pouco reticente, porque um dos elementos mais importantes de “Samba de Guerrilha” era a interação com as pessoas: não tinha um texto escrito pronto - ia falando, tinha uns tópicos, mas a meio do espetáculo podiam mudar completamente, de acordo com a reação das pessoas. Uma coisa dessa natureza não tem como transformar num álbum. 

Mas conseguiste, através dos momentos de narração que intervalam os temas…

Sim, exatamente. Tentei adaptá-lo a algo mais fixo: defini um texto, resumi muito. Quando apresentava o projeto, por vezes demorava duas horas, mas não podia lançar um álbum tão longo. Experimentei, fiz umas maquetes já com a narração (na primeira maquete, era eu próprio que narrava). Enviei ao meu amigo, ele disse que ia mostrar ao chefe para ele ver se interessava à editora, mas… a editora não quis. No fundo, até foi uma coisa, porque, depois de já ter produzido as maquetes, de ter ficado a pensar muito no assunto, já estava completamente envolvido nessa ideia e convencido de que dava para fazer esse álbum. Aliás, já o tinha começado, efetivamente. Então, o facto de eles terem dito que não queriam ainda me motivou mais a fazê-lo - para provar que era possível e que podia sair uma coisa interessante dali. Foi o que eu fiz: continuei sozinho, gravei o álbum todo, quase tudo em casa. A pandemia entrou no meio desse processo, em 2020, o que, por outro lado, me abriu a agenda - fiquei com muito tempo para produzir. E foi assim que se transformou “Samba de Guerrilha” num álbum. Antes disso, chegou a virar um programa de Rádio na Rádio Universitária do Minho (RUM). Depois, tal fanzine que o Rui me tinha proposto na apresentação de 2016 virou um jornal. Achei que, como tinha muito texto, fazia sentido.

Um formato que se transpôs para o álbum - também a sua imagem é alusiva a um jornal. Porquê esta associação? está implícita alguma crítica à forma como o jornalismo retrata ou segrega a História?

A mim não ocorreu fazer uma crítica ao jornalismo, mas é uma interpretação possível. Eu vejo mais como uma crítica à censura: porque o Samba (e não só - a música brasileira de uma forma geral) sofreu muito com a censura. Assim como o jornalismo é a vítima mais simbólica de todo o tipo de censura. Então, contar estas histórias no formato de jornal é também uma crítica à censura.

Fotografia: Rebeca Fernandes © Epopeia Brands

 

«Fechou o livreiro fechou a quintanda e o florista
A cidade vai virar só hotel para turista
Fechou a taberna a confeitaria e o alfarrabista».

 

Em “Samba Sem Fronteiras”, álbum de 2018, falas da gentrificação – um fenómeno que o Brasil conheceu bem antes de ela te ser visível em cidades como o Porto, onde vives. Como é que essa e outras conjunturas e nuances políticas viram combustível para o que escreves e crias?

O Samba como género poético tem uma característica particular: ele serve muito bem para fazer crónicas e falar sobre situações muito locais e delimitadas num certo tempo e espaço, mas que podem ser extrapoladas para leituras mais universais. No caso da gentrificação, é exatamente isso: nós temos estórias ligadas à gentrificação, que são estórias do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro. Desde há muito que os sambistas, por pertencerem a uma comunidade vulnerável a essas transformações da geografia urbana, são sempre o lado mais fraco da corda, o lado que rebenta. Como vivenciaram esse fenómeno, escreveram músicas sobre ele. Não diretamente sobre o conceito abstrato de gentrificação, mas sobre coisas reais que lhes aconteceram; sobre os espaços que tinham; sobre uma casa onde fulano morava e que foi derrubada; sobre uma praça que não existe mais. Espaços em que as pessoas viviam e se encontravam. A partir desses relatos locais, uma pessoa que olhe com atenção consegue entender o panorama mais completo do que estava a acontecer naquela época, e porque é que aquele feito muito local vem de problemas sociais anteriores de gestão política e de preconceito contra aquelas pessoas por serem pobres, negras ou imigrantes. São pessoas que estão sempre em situações mais precárias, ao nível da habitação e do acesso a todo o tipo de serviços. Eu vi-o a acontecer em Portugal e, de certa forma, foi aqui que entendi o conceito ou fenómeno da gentrificação, de uma perspetiva mais conceptual: aprendi que existe uma palavra para isso. Afinal, o que sempre aconteceu no Rio tem um nome. Vi-o a acontecer em Lisboa, e muito fortemente no Porto, onde cheguei em 2012, num momento em que essa onda estava em crescimento vertiginoso. Esse próprio lugar onde o “Samba de Guerrilha” aconteceu pela primeira vez, a Associação Contrabando, foi um dos lugares que viajou por conta dessa onda. Recentemente, temos o caso das Galerias Lumière que, como tudo, viraram hotel.

Pouco depois, em 2014 e 2016, decorriam no Brasil a Copa do Mundo e as Olimpiadas, de uma forma ainda mais violenta: havia rios de dinheiro a entrar na cidade, muita especulação, muitas pessoas a ser desalojadas, muitas reformas urbanas. A paisagem do centro do Rio de Janeiro mudou bastante por conta disso - de projetos que aconteceram muito ao atropelo. É claro que foram as mesmas pessoas, as mesmas comunidades a sofrer com essas reformas. Isso aconteceu em 2014 e 2016, tal como aconteceu em 1940 na Praça Onze, e tal como tinha acontecido no final do século XIX com os Cortiços. O Samba, como nasceu dentro dessas comunidades, é testemunha; primeira pessoa. É uma ferramenta muito boa para falar dessas estórias.

Há uma afirmação de Beto Sem Braço que, para ti, descreve bem a essência do Samba: “o que espanta a miséria é a festa.” O que é que esta expressão te diz?

Essa frase é um pouco lendária. Há anos que a ando a espalhar nos meus concertos! Dizia-se que ele tinha dito essa frase em resposta a uma pergunta que fizeram a respeito de o Samba ser um género muito festivo, apesar de ter nascido no seio de comunidades muito pobres, sofridas e perseguidas. Essa resposta tem muito a ver com isso. Depois, descobri que existe uma outra versão dessa história: ele terá dito essa mesma frase, mas num contexto completmente diferente: não sei se por causa de uma música ou de um jogo, mas houve um momento em que o Beto Sambista ganhou uma grande quantia de dinheiro, muito rapidamente. E o que ele fez? Gastou tudo dando uma festa! Chamou todos os amigos, artistas, tudo o que ele conhecia, com comida e bebida para todos. E alguém foi questioná-lo: “Fogo, Beto ! Você está sempre tão ferrado de dinheiro, sempre a precisar (era favelado, sambista pobre)…porque é que não juntou um pouco para comprar um carro ou uma casinha melhor?” E foi aí é que ele deu essa resposta: “O que espanta a miséria é a festa!” No final, ambas vão dar ao mesmo lado. Talvez as duas sejam verdade, até!

 
 
nem todo o trabalho artístico precisa de uma justificação desse tipo para existir. Só o facto de existir para mera contemplação já é suficiente, ou deveria ser.

Que misérias e sintomas pouco democráticos identificas hoje e que é preciso espantar pela música?

A miséria que a música consegue combater melhor é a intelectual. Uma miséria cultural, de pensamento, de ideias. A música consegue ser mais efetiva nesse plano do pensamento; combater uma pobreza de pensamento. Mas, no plano material, o que a música consegue é dar sugestões. Ouvi o Emicida dizê-lo numa entrevista, e achei brilhante. Este é o grande dilema: como justificar o valor da música, o valor da Arte, num mundo com tantos problemas graves, de ordem material e concreta? O que é que a música pode fazer por uma pessoa que está com fome? Não pode fazer grande coisa, mas consegue apontar alguns caminhos, algumas sugestões.  É a música a ser usada como ferramenta.

É muito difícil explicar quantitativamente um trabalho artístico, um trabalho intelectual. Quantas pessoas vão entender isso? Isto é feito para que público? É uma armadilha pensar por esse lado.

O “Samba de Guerrilha” é um projeto que tem um objetivo muito claro e que está para lá da música. Mas, por outro lado, também acho que nem todo o trabalho artístico precisa de uma justificação desse tipo para existir. Só o facto de existir para mera contemplação já é suficiente, ou deveria ser. A produção cultural, de um modo geral, onde quer que se faça, independentemente do público, faz parte da nossa construção civilizacional, da nossa identidade coletiva, enquanto comunidade. A Cultura e a Arte são coisas muito importantes dentro do que nos torna humanos. Sem isso, a vida é muito mais difícil. E voltamos àquela história: “o que espanta a miséria é a festa”. Compreendendo a Arte como uma espécie de festa, no sentido expandido da palavra: festa dos sentidos, do pensamento; festa como exercício de liberdade. Para que é que serve uma festa? Não precisa de servir para nada; não precisa de ter uma utilidade. Se as pessoas vão a uma festa é porque, de certa forma, ela contribui para que as suas vidas sejam mais suportáveis, mais agradáveis – e isso não é pouca coisa. É preciso todas as coisas básicas - um sítio para viver, para dormir,  um trabalho, comida, mas é também preciso a festa. Ela é muito importante.

No palco, estás na companhia de Carlos César Motta na bateria; de Neném do Chalé nas percussões; da Pri Azevedo no teclado e acordeão e de César Ribeiro na guitarra. Como é que se deu esta relação?

O Carlos César, baterista, ele acompanha-me desde 2019, desde o “Conversa de Fila”. Desde que chegou a Portugal, na verdade. Eu conheci-o por acaso, na rua, numa roda de Samba do Porto. Na altura, ainda não vivia no Porto. Era o baterista da banda da Maria Bethânia, que tinha vindo dar um concerto no Coliseu do Porto. O Carlos estava com uma tarde livre no fim de semana, e tinha ido passear pela Rua das Flores, onde eu estava a tocar o “Samba sem Fronteiras”, dentro da programação das festas do São João do Porto. Quando acabou a roda, veio falar comigo. Por acaso é do Rio, carioca como eu, mas eu só o conheci no Porto. Trocámos ideias, ele arranjou-me um convite para assistir ao concerto da Maria Bethânia, que foi incrível. Um ano depois voltou com a Maria Bethânia, já com a intenção de se mudar para Portugal. Assim que ele chegou, em 2019, chamei-o para tocar comigo. Toda a digressão do “Conversa de Fila” fiz com ele. Até hoje, quando não podemos ir com a banda toda por qualquer circunstância, mas ele está disponível, prefiro ir com ele do que sozinho.

Já a Pri é irmã de uma amiga de infância, a Bianca. Durante um tempinho, chegámos a estudar juntos numa escola, no Rio, mas não tínhamos muito contacto, pouco conversávamos. Até que ela veio para o Porto com a esposa, a Lu - também cantora maravilhosa. Aproximámo-nos e, quando chegou a hora de formar banda para o “Samba de Guerrilha”, eu quis chamá-la, apesar de o disco não ter teclas! Tem alguns sintetizadores, uma coisinha ou outra diferente de cordas e percussão, mas não estava preocupado – queria era tocar com a Pri! Qualquer pessoa que assista à Pri a tocar, percebe. É uma figura muito boa de ter ao lado, a tocar, e é uma pessoa incrível. Escolhi a minha banda assim: primeiro as pessoas, depois os instrumentos. “Quero tocar com a Pri porque sim, porque a Pri é fixe!”

Estamos em abril, um mês que há 48 anos tem um peso particular para Portugal. Um dos nomes mais ressoantes da luta pela liberdade foi José Mário Branco, a quem foi dedicado um disco em 2019: “Um Disco para José Mário Branco”, que juntou mais de dez músicos. Tu participaste com uma versão do tema “Queixa das Almas Jovens Censuradas”, escrito em 1971 por Natália Correia - ainda em plena ditadura. Porquê a adesão a este disco?

Esse disco acabou por ser uma mistura de versões feitas para o disco e versões que já tinham sido lançadas antes, que não eram inéditas. A Ana Deus escreveu-me a dizer que a editora estava a recolher canções para terminar o disco, e que a tinham procurado para gravar uma das versões. Então, disse-me para perguntar se não queriam que eu fizesse uma versão. Gravei então essa versão de uma música da qual sempre gostei - sempre soube que nalgum dia iria fazer uma versão. Gravei, tentei fazer a coisa mais bonita que eu consegui, e mandei. Eles gostaram, e acabou por ser o single de lançamento do tributo e a tocar na rádio. Foi um prazer gigante - não só por ter sido o único brasileiro a participar num disco de tributo a José Mário Branco, mas também por o ter conseguido fazer antes de ele morrer. Lembro-me exatamente de, no dia em que ele morreu, acordar de manhã com várias ligações de pessoas de rádios que queriam entrevistar-me por causa da versão que eu tinha feito. Foi impactante, no sentido do efeito que essa gravação teve para fora. Uma coisa em que nem seria suposto eu participar! De repente, o José Mário morre e várias pessoas lembram-se de mim por causa da versão que fiz do seu tema. De certa forma, é um elogio ao que consegui fazer com a música. Eu adoro tocá-la, ainda hoje a toco em concertos. Geralmente, quando estou com banda, ela não entra. Mas, quando estou sozinho ou com o Carlos e consigo fugir mais do repertório de “Samba de Guerrilha”, eu incluo esse tema.

Se bem que ela faz sentido enquadrada em “Samba de Guerrilha”…

Faz muito sentido! Posso passar a inclui-la. É uma boa ideia!

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