Giacomo Scalisi: entre o espetáculo "Não" e a reivenção da Cultura, do Pensamento e do Espaço

Arranca hoje, dia 23 de outubro, a apresentação itinerária do espetáculo “NÃO”, promovido pela cooperativa cultural Lavrar o Mar, e que se estende ao longo de vários pontos da Costa Vicentina e do interior algarvio, até 7 de novembro.

Interpretada e co-criada por Ana Root, Rita Rodrigues, Sofia Moura e Pedro Salvador, a peça estreia-se no Espaço +, em Aljezur, pelas 19 horas, regressando no domingo, às 18. Dia 1 de novembro chega ao Auditório Municipal António Chainho, em Santiago do Cacém, pelas 16 horas, e nos dias 6 e 7 termina na Casa do Povo de Alferce, em Monchique, pelas 19 e 18 horas. Pelo meio, também algumas escolas de Odemira a vão receber.

Nascido na cidade italiana de Novara a 10 de Novembro de 1958, e além de encenador de “Não”, Giacomo Scalisi é diretor artístico da Lavrar o Mar.
Hoje, se há sinergias que agitam e insuflam a Cultura em Aljezur e demais pontos da Costa Vicentina e do Algarve, tal deve-se ao altruísmo e ao vigor que movem Giacomo – alguém cuja sensibilidade permitiu inverter a direção por que sopravam os ventos daquela que é força motriz indispensável na vida humana.

Se não há salas de espetáculo, há serra profunda e é para a serra profunda que artistas e público vão. Aí, são puxados a sentir pelo cheiro, a saber pelas texturas, a acreditar pelas impressões, pelo mundano que é seu - hábito centenário ou atividade de subsistência, da ceifa à destila, da Terra ao mar, que agora vê representadas por Outros. A passividade dá lugar a uma experiência sinestésica, por via da qual o público se sente parte do reiventado Espaço. O faz. O motiva. O é.

Na obra Walkskapes: O Caminhar como Prática Estética, do escritor italiano Careri Francesco, encontramos as seguintes palavras que André Breton terá proferido em 1952:

“Todos estávamos de acordo, então, em considerar que há uma grande aventura a ser realizada. ‘Abandonem tudo […] Partam pelas ruas’: era o motivo das minhas exortações naquele período…Mas por quais ruas partir? Pelas ruas materiais era pouco provável; pelas ruas espirituais, nós mal as víamos. Restava o facto de nos ter vindo a ideia de combinarmos esses dois tipos de ruas. Daí um deambular a quatro – Aragon, Morise, Vitrac e eu – empreendido nessa época, partimos de Blois, uma cidade escolhida ao acaso sobre o mapa.”

Aljezur não foi para Giacomo uma cidade escolhida "ao acaso sobre o mapa" , mas observaremos adiante como há harmonia entre as palavras de Breton e aquilo que a Lavrar o Mar vem tecendo nessa e outras vilas da Costa nas quais deambula.

O que começou por ser uma entrevista que tinha como mote a peça “Não”, transformou-se numa conversa sobre a Lavrar o Mar, a Liberdade, a Justiça, os Direitos Humanos e a desertificação cultural.


AR (Ana Rodrigues) – Indo um pouco atrás, como é que o Giacomo chegou a Aljezur e à Lavrar o Mar?
​​GS (Giacomo Scalisi) – Tanto eu como a Madalena Victorino – também diretora artística da Cooperativa, temos projetos em todo o país, como no Centro Cultural de Belém, em Coimbra, em Viseu e no Porto. Antes da Lavrar o Mar, eu já tinha trabalhado no Algarve, em 2011, na rede cultural Movimenta-te, e que operou durante dois anos no Algarve Central: em Loulé, Tavira, Olhão e São Brás de Alportel. No entanto, temos uma paixão tão grande por Aljezur, que acabámos por pensar em criar aqui uma cooperativa, a qual ganhou, entretanto, o nome Lavrar o Mar.

AR – Há quanto tempo dura essa paixão? Conte-nos o seu caminho.
​​GS – Viemos para Aljezur há 23 anos. Na altura, ainda estávamos em Itália, mas vínhamos inicialmente passar férias à Carrapateira. Adorámos o lugar, e chegámos a alugar uma cabana no meio das dunas, bem próxima da Natureza. Com o passar do tempo, apercebemo-nos de que queríamos ficar e que seria melhor encontrar uma casa para viver. Começámos a pensar: trabalhamos em todo o lado, mas adoramos estar aqui… assim sendo, por que não propor um projeto em Aljezur? Foi aí que começou o diálogo com a Câmara Municipal e com outras instituições da região. A dado momento, as Secretarias de Estado da Cultura e do Turismo criaram o Projeto 365 Algarve, um programa de financiamento que nos permitiu as bases de que precisávamos para lançar um projeto com profundidade, com raízes, que funcionasse como estrutura através da qual a Cultura entrasse neste território. Começámos há sete anos a preparar o projeto, tomámos a decisão de vir viver para Aljezur definitivamente, deixando Lisboa – até porque estávamos fartos da cidade. Lá, criámos há 10 anos o Festival TODOS, que ainda existe mas que acabámos por deixar, para nos dedicarmos a tempo inteiro ao Lavrar o Mar. Nós já trabalhávamos em estruturas culturais, umas maiores e outras nem tanto, em todo o país, mas...chegar a Aljezur e não ter nem um Teatro, ter de inventar os lugares... este foi, para nós, um grande desafio.

AR – Foi um desafio…estimulante?
​​​GS – Tivemos de inventar um projeto sem ter as condições básicas, como uma sala de teatro, um auditório, uma estrutura pré-existente, um projeto de política cultural no território – não havia nada disso, quando chegámos. Tivemos de começar do início. E assim fizemos, com as nossas energias que nunca acabam, a minha e a da Madalena. Hoje, somos muito felizes porque o projeto está a correr bem.

AR – Como têm sido a adesão e o acolhimento das populações dos vários lugares até onde chegam os projetos do Lavrar o Mar?
​​​​GS – Em pouco tempo – cerca de quatro ou cinco anos, ganhámos um público muito fiel, que nos acompanha e está sempre pronto a acolher, com curiosidade, as nossas propostas artísticas, algumas das quais nem sempre são as mais fáceis. Temos alguns momentos altos, como é o caso do Circo de Monchique, realizado pela última vez antes da Pandemia, com quase mil pessoas por dia, ao longo de 6 ou 7 dias - o que nos dá muita confiança no nosso trabalho.

AR – Fazia falta tornar a cultura mais palpável, nesta zona?
​​​​GS – As pessoas têm um grande interesse na Cultura, o problema é que, muitas vezes, não a conhecem. Não têm oportunidade de estar perto dela. Acham que a cultura é algo longínquo da realidade das suas vidas. O facto de proporcionarmos estes momentos mais diretos com pessoas que nunca foram a um teatro ou ver um espetáculo num circo; que nunca desceram até ao fundo dos vales por outras razões a não ser fazer um passeio ou para cultivar o campo, e que agora descem para assistir a um espetáculo de dança em que eles próprios participam - tudo isto permite criar uma nova relação com a cultura, uma relação de descoberta e de entendimento de que ela também pode enriquecer, dar alimentos para a alma, para o espírito, para a inteligência, para o pensamento.
Com este último projeto que lançámos, o Lavrar o Mira e a Lagoa, focado nos concelhos de Santiago do Cacém e de Odemira, acabamos por voltar à ideia inicial do projeto, a qual passava por criar um triângulo entre Aljezur, Monchique e Odemira – sendo que a última, no início, não se quis juntar. Hoje, são as próprias Câmaras Municipais de Odemira e de Santiago do Cacém a ver potencial nestes projetos para enriquecer a Costa, e a querer passá-los também para essas duas zonas.

AR – Entrando agora na “Não”, esta peça nasce do diálogo com textos de Afonso Cruz, nomeadamente das obras O Livro do Ano e Paz Traz Paz, lançadas em 2019 e 2013, respetivamente. Que inquietações estiveram na base deste diálogo? No fundo, como é que, a partir destas obras, nasceu a “Não”?
GS – Afonso Cruz não é uma novidade no projeto Lavrar o Mar. Escreveu os episódios do projeto Medronho, uma saga de 5 anos; escreveu sobre as mulheres da Serra. Foi uma colaboração maravilhosa. Eu já conhecia o Afonso Cruz de outro projeto em Lisboa, o Teatro das Compras. É uma ligação que temos de trabalho e de amizade muito grande e antiga.
Escolhi com ele alguns textos desses dois livros, e a partir daí começámos a criar a dramaturgia. A escrita do Afonso é maravilhosa e eu já estou habituado, por isso não foi difícil. Outra coisa que eu queria trazer para a peça era música, o canto polifónico. Porque a palavra pode chegar até um certo ponto, mas o canto e a música vão além e conseguem tocar as pessoas com uma emoção diferente. Então, escolhi três atrizes: a Ana Root, a Rita Rodrigues, uma atriz com quem já tinha trabalhado (fez parte também da peça Madalena, do espetáculo Quando), e Sofia Moura, de Viseu, com quem também já tinha trabalhado. Umas mais ligadas ao teatro, outras mais à música, mas as três, em conjunto, têm uma ligação muito forte e interessante – no teatro, na palavra, na música, no canto.
Esta sexta-feira apresentámos, finalmente, aos alunos da escola de Aljezur. Eu estava ansioso, porque eram miúdos entre os 13 e 16 anos, mas correu muito bem.

AR – Como foram as reações?
GS – São idades difíceis, mas os miúdos ficaram presos ao espetáculo de uma maneira incrível. Fiquei tocado por esta sua presença: sempre atentos e com muitas perguntas, no final. Alguns dos professores que os acompanharam já conheciam ou tinham trabalhado textos de Afonso Cruz, e foi uma agradável surpresa reencontrarem-se com eles, agora na forma de espetáculo.
As reações deram-me esperança de a mensagem e a reflexão terem chegado até eles. Não sei se perceberam tudo, mas ficaram a pensar – o que já é alguma coisa, poder dar este estímulo. Temos de falar com eles e dar-lhes esta possibilidade de terem matérias para pensar. A Escola, por vezes, não parece preparada para lidar com estes temas, e chega a ser muito retrógrada. Com este espetáculo, procurámos tornar possível essa reflexão. Todos passámos pela adolescência, e sabemos que é um momento difícil: de mudança, onde nos encontramos com as diferenças. Então, temos de tentar desconstruí-las. Espero que este espetáculo possa ajudar, tanto adultos como jovens, a encontrar o seu lugar – e a encontrá-lo da maneira certa.

O meu professor tinha vivido a ditadura em Itália – tinha sido partigiano e ido para as montanhas combater os fascistas. Um dia, numa aula, disse-nos que tinha dado a vida para que nós pudéssemos estar em liberdade, e que, agora, era connosco.

AR – A questão da liberdade é um dos principais motes da peça. Porquê?
GS – Eu tinha mesmo vontade de realizar este espetáculo porque achava importante, atendendo ao contexto histórico que estamos a viver, marcado por cenários de populismo não só no nosso país, mas também no resto da Europa e do mundo. É por isso importante falar de temas que são hoje fundamentais – sobretudo para a geração mais jovem. Daí que o público para esta peça seja a partir dos oito anos. É também muito importante que as crianças e os jovens venham com as escolas, dando matérias aos professores para que possam dialogar. E também com os pais – gosto muito que os espetáculos sejam assistidos por famílias, entre pais e filhos, que depois voltam a casa e podem falar sobre os temas e desenvolvê-los. São como bóias que lançámos para poder alimentar este diálogo entre pais e filhos em torno de temas e questões fundamentais: o que é o ser humano, como é que podemos viver em conjunto e numa sociedade justa; como respeitar todos os que têm culturas e línguas diferentes; como é que o mundo pode viver sem guerras; como é que os regimes totalitários e fascistas podem deixar de existir. Sobretudo, como manter viva a ideia de liberdade.
Em parte, para esta peça fui também influenciado por uma memória antiga que guardo comigo. Tinha oito anos e estava na escola primária, em Itália. O meu professor tinha vivido a ditadura em Itália –tinha sido partigiano e ido para as montanhas combater os fascistas. Um dia, numa aula, disse-nos que tinha dado a vida para que nós pudéssemos estar em liberdade, e que, agora, era connosco; que cabia a nós manter essa liberdade. É algo que ainda não esqueci; um recado que guardei comigo e me ajudou a procurar viver de uma forma justa.

AR – Fala-se sobre a discussão da liberdade como antídoto contra o ódio. Onde, e de que formas, é que o Giacomo encontra o ódio, hoje?
GS – ​Em muitos lugares: nos políticos, nos partidos populistas que incitam o ódio, o racismo, a criação de uma identidade nacional – que é falsa, porque não é por sermos portugueses que temos de odiar os outros todos. Pelo contrário! Os próprios portugueses saíram do país, tal como os italianos, à procura de melhores condições de vida num outro lado.
Basta mesmo muito pouco para fomentar o ódio e para criar desequilíbrios na sociedade. Olhemos para a violência doméstica que tanta vez culmina na morte das mulheres - nos femicídios. Tudo isto por falta de respeito pelo outro.
Temos inúmeros exemplos de como a nossa sociedade não está em paz. De que o mundo não está em paz. Estamos sempre à beira de uma guerra, de uma expressão de violência… e tudo isto para quê? Pelo dinheiro, pelo poder. Porque poucos são ricos e muitos são pobres. Porque vivermos uma vida quase sem poder pensar, só a trabalhar para poder manter os filhos – ainda que a ganhar pouco. Tudo isso com um grande sacrifício quando, do outro lado, os ricos não dão oportunidade, nem tempo, nem espaço aos outros de viver a sua própria vida.
Estes são temas muito atuais e fortes, e por isso é que quis fazer este espetáculo para jovens a partir dos oito anos. Acho que são eles que têm agora de começar a ter uma posição e a pensar nisto – com seriedade.

AR – Queria regressar a uma ideia muito importante que tece a “Não” : “o que é, afinal, ser normal?” Quando a ouvi, lembrei-me de Loucura, obra de Mário de Sá Carneiro, na qual se diz:

"Loucura? — Mas afinal o que vem a ser a loucura?… Um enigma… Por isso mesmo é que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de loucos…
Que a loucura, no fundo, é como tantas outras, uma questão de maioria. A vida é uma convenção: isto é vermelho, aquilo é branco, unicamente porque se determinou chamar à cor disto vermelho e à cor daquilo branco. A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções: é a gente de juízo…
Pelo contrário, um número reduzido de indivíduos vê os objectos com outros olhos, chama-lhes outros nomes, pensa de maneira diferente, encara a vida de modo diverso. Como estão em minoria… são doidos…
Se um dia porém a sorte favorecesse os loucos, se o seu número fosse superior e o género da sua loucura idêntico, eles é que passariam a ser os ajuizados: «Na terra dos cegos, quem tem um olho é rei», diz o adágio: na terra dos doidos, quem tem juízo, é doido, concluo eu."

AR – Transitando esta ideia de a loucura ser uma questão de números para o meio pequeno que é Aljezur, em termos populacionais, como é que se inculca nos jovens não só a convivência na diferença, mas também a liberdade de ser essa diferença?
GS – Outro tema muito forte é essa questão - “o que é ser normal?”, no sentido de…como é que podemos olhar para estas pessoas, "diferentes", e acompanhá-las. O facto de não sermos todos iguais é uma mais valia. Pensar por cada um é importantíssimo. Por vezes, a sociedade dá-nos uma liberdade que nos condiciona muito. Em pequenas vilas, sobretudo, o que não é considerado "normal" é julgado de uma maneira muito forte e há pessoas que têm mesmo de sair. Por isso mesmo, há muito que pensava em criar um espetáculo sobre estes temas.

AR – Diz-se que a “Não” serve como “lembrete das coisas importantes das quais não nos podemos esquecer”. Que coisas são essas?
GS – Encontrar a humanidade que existe em cada um de nós. Temos de saber reconhecê-la, pois é uma humanidade que tem a ver com tudo o que acontece - a cada dia, a todos nós.

Um exemplo: vivemos em Aljezur, mas, não muito longe daqui, temos pessoas que vêm da outra parte do mundo – de países como Bangladesh, India e Nepal, à procura de uma vida nova, mas que acabam a ser escravos modernos. Trabalham em estufas com químicos e durante horas infinitas. São mal integradas, vivem em condições financeiras, de trabalho e habitação muito precárias, e não é justo. Assim, o mundo não é justo.

GS – Este território é um parto natural maravilhoso. Como é possível devastá-lo assim, com agriculturas tão intensivas, que produzem frutos para depois exportá-los para países mais ricos que Portugal, que pagam muito mais? Aqui, o que fica são químicos e terra queimada.
Todas estas injustiças têm que fazer as pessoas pensar, refletir. E eu acho que é possível mudar. Tenho esperança, ainda, e daí o espetáculo “Não”.

AR – “Resistir” é um grito de força que move o espetáculo “Não”. Transladando este mote para o resto, ao que é preciso resistir, hoje, e de que maneiras? Pela Arte?
GS – Também pela Arte, claro. Resistir é realizar este espetáculo. É fazê-lo pelas nossas ideias, para que o que pensemos seja justo. Há uma expressão que Afonso Cruz usa e da qual eu gosto muito: é preciso “ser Ser humano”. Ter humanidade por cada um de nós. Como diz o seu livro, “Paz traz Paz”, ao contrário da guerra, e daí a necessidade de resistir – pela liberdade.


FONTE Make It Happen   FOTOGRAFIA João Mariano
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