Nelson Dias: “temos que ser capazes de perspetivar o futuro a partir desse mesmo futuro. É assim que funcionam as utopias”

Há em si um interesse pelas questões sociais que começou desde cedo. Recorda-se de qual foi a primeira motivação, profissional ou não, que o levou a querer contribuir de forma activa para a transformação da sociedade?
São diversos os fatores que influenciam o nosso percurso, como o meio em que nascemos e crescemos, as oportunidades que nos são proporcionadas ou que decidimos criar com a nossa ação, bem como a atitude que temos perante a vida. Eu recordo, no decorrer no curso de licenciatura em Sociologia, um episódio que me marcou e, estou certo, me influenciou. Tomei na altura conhecimento das aldeias de Vilarinho das Furnas e Rio de Onor, localizadas no Norte de Portugal, que até à década de 70 do século passado se encontravam em contexto de enorme isolamento geográfico, social, económico e até político. As condições de vida eram bastante severas e isso conduziu essas populações à criação de modelos de organização própria, necessários à sua sobrevivência, e que escapavam ao “Estado Novo”. Os académicos designaram estas formas de vivência coletiva de “comunitarismo agro-pastoril”, querendo expressar, assim, que essas povoações, alicerçadas na agricultura e na pastorícia, viviam num contexto de auto-organização, com regras de funcionamento concebidas e geridas pelos próprios moradores desses locais. Estas histórias, que tive oportunidade de estudar de forma mais detalhada, com visitas aos locais e contactos com as suas populações, marcaram muito o meu percurso enquanto pessoa e profissional.
A existência de um Estado de Direito Democrático é fundamental. Isto significa que as comunidades que referi anteriormente não são possíveis nos dias de hoje. O que me move não é voltar atrás, mas olhar para o presente, com os olhos postos no futuro, e agir para ajudar a construir um Estado de Direito ainda mais democrático. O presente é sempre curto se quisermos transformar algo nas nossas sociedades. Temos que ser capazes de perspetivar o futuro a partir desse mesmo futuro. É assim que funcionam as utopias.

​Ao longo do seu percurso profissional, quais os projetos que considera terem criado maior impacto na sociedade?
Uma boa parte do meu percurso profissional tem sido dedicado à atividade de consultoria. Tenho o privilégio de ter podido trabalhar, até ao momento, em países de quatro continentes, marcados por realidades muito distintas.
A natureza deste trabalho impede-me de permanecer por longos períodos nos locais onde sou convidado a colaborar, razão pela qual um dos meus principais esforços é o de ajudar a capacitar as equipas com as quais trabalho nesses territórios, para sejam agentes da transformação pretendida. Essas equipas vão lá permanecer e diariamente terão de enfrentar inúmeros desafios à sua capacidade de ação e de resiliência.
Não tenho todos os elementos para medir os impactos deste trabalho, mas sei que “toquei” muitas pessoas ao longo deste percurso e que terei ajudado a olhar de forma diferente para os problemas, bem como a conceber novas ferramentas e metodologias de intervenção, sempre numa visão humanista e emancipatória.
Sou contactado diariamente por pessoas com quem tenho trabalhado nos diferentes países. Partilham comigo o que estão a fazer, as dúvidas e dificuldades que sentem, os avanços alcançados. Este é um excelente indicador de que este percurso não tem sido em vão e que a grande mudança se faz com as pessoas.

Escreveu sobre a “construção de uma agenda dos orçamentos participativos para os próximos 30 anos”. Nesse, expõe alguns pontos essenciais para a recriação e adaptação destes processos aos novos tempos. Gostaria de destacar alguns desses pontos?
A definição de uma agenda para os próximos 30 anos dos orçamentos participativos resulta da necessidade de anteciparmos o futuro que aí vem, combatendo a tendência que temos de reagirmos aos acontecimentos e acomodarmos as nossas vidas às dinâmicas que atravessam e colonizam as nossas sociedades.
O mundo mudou de forma extraordinária durante esta pandemia e vai mudar muito mais nas próximas três décadas. O momento em que nos encontramos é o início de uma nova revolução, provocada pelo avanço exponencial da tecnologia, da inteligência artificial, da biotecnologia e da nanotecnologia. A conjugação destas diferentes áreas terá consequências imprevisíveis, embora não seja difícil de imaginar que se farão sentir impactos significativos na vida em sociedade, nas atividades profissionais, nas relações internacionais, no funcionamento dos mercados, na forma como as pessoas se relacionam entre si e com as instituições, colocando desafios à própria democracia e à participação.
A Inteligência Artificial é uma realidade em construção acelerada e colocará desafios éticos muito sérios à humanidade. A pressão sobre a proteção de dados pessoais deverá aumentar. Casos como o "Social Credit System" na China, o papel da Cambridge Analytica na eleição do Donald Trump, as "fake news", o poder dos algoritmos do Facebook e Google na pesquisa de informação, as “câmaras inteligentes” nos locais públicos são alguns dos exemplos mais atuais do caminho encetado pelas sociedades modernas.
As tecnologias de Inteligência Artificial tomarão parte do jogo político ao permitirem a personalização em massa de conteúdos e a antecipação de tendências e comportamentos. Através da leitura massiva de dados, em poucos instantes, os candidatos às eleições e os governantes vão poder mapear centenas de grupos de pessoas, moldando e segmentando os discursos para ir ao encontro dos desejos, medos e sentimentos de cada um, sem que esses sejam efectivamente ouvidos e sem que as suas opiniões cheguem a moldar as prioridades políticas. Se este for um dos caminhos a seguir, certo é que os impactos negativos sobre a democracia e a credibilidade das instituições se fará sentir de forma ainda mais gravosa.
É necessário estabelecer fronteiras éticas muito claras e imaginar de que forma as novas modalidades de inteligência poderão efectivamente servir para aumentar a transparência das instituições, reforçar o diálogo entre quem governa e quem é governado e aprofundar os espaços de participação.
Com a produção massiva de tecnologia e a criação de preços acessíveis aos consumidores, um governo local poderá, em poucos anos, vir a contactar de forma personalizada, através de “assistentes pessoais”, entenda-se robôs, ou outras máquinas inteligentes, os moradores de um bairro para que participem numa reunião ou consulta pública sobre a discussão de um plano territorial ou a realização de uma obra de reformulação de uma praça.
Seja pelos riscos, seja pelas potencialidades desta revolução tecnológica, os orçamentos participativos devem estar atentos e antecipar a realidade que se avizinha.


​Neste mesmo artigo refere que “A génese do orçamento participativo é reconstruir a confiança entre a população, o diálogo e a credibilidade da democracia.” Considera que o investimento na cultura pode ajudar neste processo?
O conceito de cultura é complexo e depende do posicionamento que cada cientista tem sobre o tema. Não é possível explorar esta questão no âmbito da nossa conversa mas o tema é essencial para se perceber de que cultura estamos a falar e de que investimento vamos necessitar para que a cultura seja efetivamente uma variável determinante na construção de uma sociedade mais confiante, mais dialogante, mais coesa e mais democrática.
Os nossos diferentes saberes, os conhecimentos adquiridos, as competências produzidas, os comportamentos e as práticas que assumimos, na sua ampla diversidade, têm uma relação muito direta com a cultura de um povo ou de uma comunidade.
Com o devido distanciamento, quando não orientada para a dominação social, a cultura assume numa sociedade um papel central e incontornável, pois nela se une uma comunidade e em torno dela se forma um sentimento de pertença. Isto é essencial se queremos construir sociedades coesas, que confiam no seu potencial coletivo, que se interessam pelo bem comum e que por isso se envolvem e participam, dando, assim, densidade e profundidade à democracia.

"A “cidade dos espectadores” terá de dar lugar à “cidade dos actores”. Os primeiros consumem cultura, normalmente associada ao espetáculo; os segundos produzem cultura, transformando o território. "​


​Como é do seu conhecimento, Faro está neste momento a elaborar um plano estratégico para a área da cultura e tem a ambição de vir a ser Capital Europeia da Cultura em 2027. Considera que este investimento pode ser determinante para unir os farenses em torno de um projecto para o concelho?
Eu nasci em Faro e aqui continuo a viver. Tendo por esta cidade e por este concelho um carinho especial e uma visão que mistura as vivências locais com as experiências internacionais que tenho vindo a acumular.
Faro viveu durante muitos anos num contexto de permanente alternância democrática. A mudança é positiva mas, quando essa ocorre como regra e em ciclos de governação muito curtos, a cidade perde dinâmica, não consegue definir um rumo e deixa de existir um projeto de futuro para o território. Foi o que aconteceu!
Juntando a isto, foram cometidos alguns erros estratégicos e de forte impacto financeiro na gestão do Município, que geraram o completo descontrolo das contas públicas e hipotecaram a capacidade transformadora da autarquia.
O ciclo político de maior estabilidade nos executivos tem sido vivido nos últimos cerca de 10 anos, período que coincidiu, no seu arranque, com a fortíssima crise internacional, que como sabemos afetou em grande medida o nosso país, bem como a cidade de Faro, com a retração do investimento público e privado. Todos nos lembramos de assistir ao esvaziamento do centro da cidade e ao fecho acelerado de espaços comerciais.
Durante este período, foi notório o investimento da autarquia na área da cultura, atraindo eventos, sobretudo associados ao espetáculo, que foram importantes na revitalização do centro, na conjugação de esforços com o setor privado, no reforço e na qualificação da oferta do Teatro Municipal e na recuperação de um certo sentido de pertença das pessoas à cidade.
Naturalmente que a ambição de vir a ser Capital Europeia da Cultura, num contexto em que Faro tem perdido capitalidade regional, coloca uma exigência redobrada na aposta que tem sido feita e todos estão conscientes disso. A “cidade dos espetadores” terá de dar lugar à “cidade dos atores”. Os primeiros consumem cultura, normalmente associada ao espetáculo; os segundos produzem cultura, transformando o território.
Quero destacar que entendo “atores” não como alguém que representa um papel ou assume uma função num determinado cenário. Entendo “atores”, no contexto da Capital Europeia da Cultura, num duplo sentido: cidade que coloca a enfase na produção de cultura, mais do que no seu consumo; e cidade que participa, assumindo que a construção de uma “capital” se faz com a participação da comunidade. Esta segunda dimensão é muito relevante, sobretudo porque Faro não tem uma tradição em processos participativos. Tem, aliás, um deficit bastante significativo nesta matéria. A dinâmica criada em torno da elaboração de um plano estratégico de cultura é uma das raras exceções desta cidade na área da participação cidadã.
Considero, assim, que a legítima ambição de vir a ser Capital Europeia da Cultura pode ser aproveitada como um projeto mobilizador, que pode dar um sentido à história mais recente desta cidade e deste território.
Dentro deste espírito transformador, creio que seria oportuno equacionar a criação de um Orçamento Participativo para a área da cultura, em Faro. Dentro de parâmetros previamente acordados e alinhados com a ambição de uma “capital que se quer europeia”, uma parte do investimento cultural da Câmara Municipal – ou em particular do Teatro das Figuras – poderia vir a ser decidido pela população, no âmbito de um processo participativo. Seria uma iniciativa pioneira e distintiva do que Faro pode fazer.
A par deste processo, muitos outros projetos, inseridos no conceito de cultura participada, poderiam, sem grandes custos, ser levados a cabo em Faro. Existem felizmente inúmeros exemplos, de enorme riqueza, nos mais diversos países que podem servir de inspiração.
Esta dimensão da cultura participada é tanto mais importante no atual contexto de perda demográfica que a região e o concelho têm vindo a viver. Segundo as estimativas do INE, Faro tem perdido, desde 2008, cerca de quinhentos habitantes por ano. Faro tem hoje menos pessoas do que tinha em 2005, por exemplo. O saldo migratório é compensado pela entrada de população estrangeira, que depois da crise de 2008 voltou a procurar o nosso país em busca de emprego e alguma estabilidade. Esta população, que representa cerca de 12% da população do concelho, acrescenta diversidade cultural à cidade mas sem sentimento de identidade ou de pertença ao território. Parece-me que seria estratégico mobilizar esta enorme riqueza no âmbito da dinâmica em curso para capital europeia.
Para concluir, gostaria sobretudo de frisar um aspeto que me parece relevante. É muito importante que Faro possa vir a ser Capital Europeia da Cultura durante um ano, em 2027, mas talvez mais importante do que isso é o processo, que durante anos pode conduzir a esse resultado e perdurar para além do mesmo. A aposta não deve, assim, estar concentrada apenas do resultado, sob pena de não deixar nada no território, mas no processo transformador que o mesmo pode potenciar.

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